ASSINE VEJA NEGÓCIOS
Imagem Blog

Augusto Nunes

Por Coluna Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Com palavras e imagens, esta página tenta apressar a chegada do futuro que o Brasil espera deitado em berço esplêndido. E lembrar aos sem-memória o que não pode ser esquecido. Este conteúdo é exclusivo para assinantes.

A honra perdida na arca de Noé

Viajam conosco muitos bichos, alguns demasiadamente furiosos e irresponsáveis, querendo fazer afundar a arca de qualquer jeito

Por Deonísio da Silva
Atualizado em 4 jun 2024, 16h15 - Publicado em 4 ago 2019, 14h13

Deonísio da Silva

Também o mundo está mergulhado numa confusão, não apenas o Brasil. Quem sabe um romance e uma canção dos tormentosos anos 70 nos ajudem a entender o que aparece junto, mas não pode ser misturado: a lei e a desordem, o policial e o suspeito, o xerife e o bandido, os que sabem que roubaram e os que sabem que não roubaram, etc.

É do escritor alemão Heinrich Böll, Prêmio Nobel de Literatura de 1972, o romance A honra perdida de Katharina Blum, lançado em 1974 e levado ao cinema no ano seguinte, com direção de Volker Schlöndorff e Margarethe von Trota, com esplêndida atuação da atriz alemã Angela Winkler (75), então com trinta anos, no papel de Katharina. Também cantora de voz delicada e maviosa,  pode ser ouvida aqui uma de suas canções de maior sucesso: “Ich liebe dich, kann ich nicht sagen” (Eu te amo, mas não posso dizer).

Conta a história de uma bela diarista divorciada que vive de seu trabalho e leva uma vida independente. Apaixonada por um certo Ludwig, a quem conhece numa festa, leva o sujeito para passar a noite com ela. Katharina não sabia que o cara era um perigoso terrorista procurado pelas forças de segurança.

No dia seguinte, a polícia invade o apartamento dela e a leva presa para depor. Segue-se um festival de exageros, tanto por parte dos investigadores quanto da imprensa. Caluniada por um jornal sensacionalista e cansada de pagar pelo que não fez, a mulher, que é inocente, mata a tiros o repórter que transformara sua prisão num escândalo nacional.

Continua após a publicidade

A imprensa, hoje entendida por mídia, por ter ampliado consideravelmente sua atuação ao englobar várias conquistas tecnológicas num veículo apenas, normalmente é mostrada em momentos heroicos, como os que teve na revelação dos documentos da guerra do Vietnã e no escândalo de Watergate. Mas o romance e o filme mostram um caso emblemático de como certo tipo de imprensa e malfeitores podem trabalhar unidos.

O autor baseou-se na luta para desmascarar as calúnias lançadas sobre ele por uma publicação sensacionalista no após-guerra. E, tal como Gustave Flaubert disse “Ema Bovary sou eu” , também Heinrich Böll deu a entender que Katharina Blum poderia ter sido ele, caluniado e perseguido pela imprensa por ter defendido que o judiciário de seu país cumprisse as leis, fossem quais fossem os réus. O contexto do livro e do filme é uma Alemanha aterrorizada pelo grupo guerrilheiro Baader-Meinhof, que atuou por mais de duas décadas, antes e depois destes dois eventos artísticos.

Vamos a outra luz, vinda da mesma época. O cantor e compositor italiano Sergio Endrigo, autor de Canzone per te, com a qual Roberto Carlos tinha vencido o Festival de San Remo em 1968, voltava em 1970 com a Arca di Noè, quase num tom de lamento, dizendo, ou melhor cantando.

Continua após a publicidade

E ogni curva un cavallo di latta/ Distrugge il cavaliere/ Terra e mare, polvere bianca/ Una cità si è perduta nel deserto/ La casa è vuota nos aspetta più nessuno/ Che fatica esser uomini”. (A cada curva um cavalo de lata/ Destrói o cavaleiro/ Terra e mar, poeira branca/ Uma cidade perdida no deserto/ A casa está vazia/ E não espera mais ninguém).

Ele fechava a canção com a mesma melancolia com que a tinha aberto, contemplando “um voo de gaivotas telecomandadas”, “uma praia de conchas mortas” e “na noite uma estrela de aço” que confundia o marinheiro” (Un volo di gabbiani telecomandati/ E una spiaggia di conchiglie morte/ Nella notte una stella d’acciaio/ Confonde il marinaio). As gaivotas eram os assustadores foguetes intercontinentais com ogivas nucleares, já então com seu apocalíptico poder de destruição. A estrela de aço era o satélite, que não sendo estrela, desorientava os navegantes.

Mas eis que entre as duas desgraças, a que abria e a que fechava a obra, o autor falava de dois momentos encantadores: Linhas brancas num céu azul/ Para encantar e fazer sonhar as crianças” e “A lua cheia de bandeiras sem vento”, “Que cansaço ser homem”.  (Strisce bianche nel cielo azzurro/ Per incantare e far sognare i bambini/ La luna è piena di bandiere senza vento/ Che fatica essere uomini).

Continua após a publicidade

E a esperança era anunciada, não no desfecho da narrativa, como é usual nos finais felizes, mas no entrecho: Partirá/ A nave partirá/ Onde chegará Isso não se sabe/ Será como a arca de Noé/ O cão, o gato, eu e você”. (Partirà/ La nave partirà/ Dove arriverà/ Questo non si sa/ Sarà come l’arca di Noè/ Il cane, il gatto, io e te).

No Brasil e no mundo, nós todos viajamos numa Arca de Noé, onde os acontecimentos são noticiados de um modo muito confuso. Viajam conosco muitos bichos, alguns demasiadamente furiosos e irresponsáveis, querendo fazer afundar a arca de qualquer jeito. Entre nós, viajam várias Katharinas com sua honra perdida.

*Deonísio da Silva
Diretor do Instituto da Palavra & Professor
Titular Visitante da Universidade Estácio de Sá
https://portal.estacio.br/instituto-da-palavra

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*
Apenas R$ 5,99/mês*
ECONOMIZE ATÉ 59% OFF

Revista em Casa + Digital Completo

Nesta semana do Consumidor, aproveite a promoção que preparamos pra você.
Receba a revista em casa a partir de 10,99.
a partir de 10,99/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a R$ 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.