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A esfinge devassada

Os manuscritos de Getúlio e Alzira comprovam que a honradez e o genuíno amor ao Brasil jamais serão incompatíveis com o exercício do poder

Por Augusto Nunes 9 jan 2019, 20h35

Publicado na edição impressa de VEJA

Nem a morte impediu Alzira Vargas do Amaral Peixoto de concluir, pelas mãos da filha Celina, o magnífico painel que escancara a mente, o coração, a alma e as vísceras do maior dos protagonistas da histórica política brasileira. Só a filha predileta de Getúlio Dornelles Vargas poderia consumar tal façanha. Ela foi secretária particular do líder da Revolução de 1930, arquivista do chefe do Estado Novo, confessora do ex-ditador exilado no Rio Grande do Sul e única confidente do presidente constitucional. Depois do suicídio, dedicou-se à busca de manuscritos que o pai guardara em esconderijos que julgava inalcançáveis. Por ter encontrado todos, só Alzira pôde contemplar em sua inteireza a singularíssima complexidade do personagem que governou o Brasil por quase 20 anos. Falecida em 1992, não contou em vida tudo o que vira e soubera. Mas não levou para o túmulo o formidável acervo de segredos. Legou a Celina Vargas do Amaral Peixoto a tarefa de localizar as peças que faltavam para completar o mosaico esboçado em 1960 com a publicação de Getúlio Vargas, Meu Pai. Quase setenta anos depois dessa pioneira incursão pelos labirintos interiores de um introvertido vocacional, o lançamento de Volta ao Poder encerrou a missão assumida pela filha e pela neta da lenda. A Grande Esfinge foi devassada.

A couraça que envolvia um homem que odiava invasões da privacidade, e preferia ouvir a falar, foi perfurada em 1995, quando as anotações feitas por Getúlio entre 1930 e 1942 em cadernos que não mostrava a ninguém foram reunidas no Diário, uma catarata de revelações apimentadas por aventuras amorosas e avaliações ferozes de companheiros de lutas. Em 2017, trechos da correspondência entre pai e filha enriqueceram a reedição ampliada do livro de memórias de Alzira. Neste fim de 2018, a publicação de 568 cartas e bilhetes finalmente eliminou o buraco negro que impedia a completa reconstituição da saga sem similares. Caso se tivessem limitado a resgatar o dia a dia de Vargas entre janeiro de 1946 e dezembro de 1950, os dois volumes já seriam uma leitura essencial. Como vai muito além desse registro histórico, Volta ao Poder tem vaga assegurada na estante das urgências urgentíssimas. Entre outros desdobramentos encantadores, a intensa troca de manuscritos conta a história de dois temperamentos quase antagônicos que os laços de sangue e a paixão pela arte da política transformaram em parceiros complementares ─ e assombrosamente afinados.

Sem um pai como aquele, ela não teria aprendido a mover-se com tamanha astúcia por territórios infestados de tocaias e armadilhas. Sem uma filha como aquela, ele dificilmente se teria animado a tentar o regresso ao Palácio do Catete pela mais sinuosa das rotas. E não haveria final feliz se Rapariguinha, como era identificada pelo pai a filha que frequentemente o tratava por , ou Gegê, não fosse provida de um estoque infinito de paciência e humor. O  sessentão cansado de guerras flertava teimosamente com a aposentadoria repelida pela vulcânica balzaquiana, que insistia na retomada da rotina de combates. O pessimista vocacional suspeitava que a deposição fora o prenúncio da morte política e se afligia com a profusão de pedras no caminho. A otimista juramentada tratava de removê-las prontamente, convencida de que o fim do ditador inaugurara a gestação do presidente constitucional.

As cartas de Getúlio, sempre bem menos extensas que as remetidas por Alzira, são um desfile de lamentos, problemas, pequenas chantagens emocionais, cobranças e muitas, muitíssimas encomendas. Em tom rabugento, ele se queixa da demora na chegada de cartas, visitantes, charutos de boa linhagem, barbitúricos, camisas, cuecas, sementes de plantas, exemplares da revista Fon-Fon, almanaques de  palavras cruzadas, notícias de bastidores. As respostas são tão minuciosas quanto divertidas. Alzira relata as providências tomadas para que nada ficasse sem atendimento ou solução, reproduz as conversas que teve e planeja as que terá. Sem abrandar o ritmo das solicitações prosaicas, Getúlio vai aumentando progressivamente a demanda por informações sobre zonas de sombra da paisagem política ─ até a carta datada de 1° de novembro de 1946 que ultrapassou o ponto de não retorno.

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Minha filha (Rapariguinha), lê-se na identificação da destinatária, que fundiu pela primeira e última vez as duas formas de tratamento mais usadas pelo remetente. As linhas seguintes avisam, em linguagem codificada, que chegara ao fim a procissão de dúvidas, incertezas e interrogações, sempre rebatidas por Alzira com argumentos poderosos, ironias abusadas e sugestões invariavelmente sensatas. O gaúcho especializado em antecipar-se à mudança dos ventos afinal se rendera à tentação de regressar pelo caminho das urnas ao coração do poder alcançado, vinte anos antes, pelo atalho da insurreição armada. “Tenho pena sempre que sou forçado a sobrecarregar-te com novas incumbências, além das que já tens e não devem ser abandonadas”, ressalva Getúlio na carta que seria o marco zero do caminho que o devolveria ao Catete. “É difícil, porém, encontrar uma pessoa em que eu possa confiar tão completamente como em ti”.

Admiravelmente ubíqua, Alzira continuou suprindo o pai exigente e seguiu gerenciando a casa que dividia com a mãe (Darcy permanecera no Rio quando o ditador deposto partiu), a filha e o marido Ernâni do Amaral Peixoto, ex-interventor e futuro governador do Rio de Janeiro. Mas conseguiu tempo e energia para coordenar os trabalhos de parto da campanha eleitoral que ajudara a conceber. Antes daquela carta, ela era a Ação a serviço do Pensamento entrincheirado numa estância gaúcha. Nos meses seguintes, o desempenho da estrategista onipresente e sagaz fundiria numa só entidade o veterano político que pensava e a jovem ativista que agia. Esse fenômeno incluiu Alzira no diminuto grupo de interlocutores que se atreviam a contestar ou mesmo repreender um caudilho que passou a maior parte da vida dando ordens. “Vejo que nossas ondas não estão sintonizando em absoluto”, comunicou Rapariguinha em novembro de 1950 ao presidente eleito. “De modo que em vez de notícias hoje quero te falar de consciência a consciência para ver se posso continuar trabalhando, ou se é melhor largar o fio, que consegui retomar a duras penas”.

A elegância da forma e a clareza do conteúdo são dois dos numerosos prazeres adicionais proporcionados pela copiosa correspondência. Volta ao Poder deposita o leitor num Brasil que, embora atormentado por manifestações de primitivismo, abriga homens e mulheres que assumem ares de estadistas ou pensadores quando confrontados com os que os substituiriam neste século 21. No país exumado pelo livro, a língua portuguesa é tratada com carinho e desvelo. Personagens históricos são identificados por apelidos talvez constrangedores, mas inofensivos. (O presidente Eurico Dutra, por exemplo, é o Grão de Bico). As frequentes queixas de Getúlio sobre a falta de dinheiro desmoralizam a catedral de falsidades erigida pela belicosa oposição, comandada por Carlos Lacerda, depois que o presidente, ao saber da compra por Gregório Fortunado, chefe de sua guarda pessoal, da fazenda pertencente a um filho, pronunciou a frase pressaga: “Eu me sinto sobre um mar de lama”. Ele merecia ter vivido para ver a ladroagem oceânica descoberta nesta década.

As aflições financeiras expostas na correspondência também sepultam a falácia segundo a qual a corrupção aportou nestas paragens com as primeiras caravelas. Não faz tanto tempo assim, quem diria, era possível ser presidente da República e honesto. Os manuscritos de Getúlio e Alzira comprovam que a honradez e o genuíno amor ao Brasil jamais serão incompatíveis com o exercício do poder.

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