A civilização como alternativa
Muitos estudantes com 16 anos vão votar e nenhum acha relevante a ditadura militar
Valentina de Botas
No parque temático das canalhices eleitorais, petistas e congêneres vão ao limite da indignidade e dão mais um passo para que Lula participe das eleições mesmo inelegível preso ou solto. Impedido pela Lei da Ficha Limpa, ele participa de modo sujo mesmo: conturbando o jogo, cuja legitimidade ele e a súcia que comanda só reconhecem quando vitoriosos. Lula mantém sem titular a chapa aberrante com dois vices, Fernando Haddad e, de stand by, Manuela d’Ávila. A insubmissão à lei não é coisa só de quem é a-velha-política: João Amoêdo desafia a lei eleitoral, que ele conhecia quando se lançou à campanha, segundo a qual só participam dos debates os candidatos cujo partido ou coligação tenha ao menos cinco parlamentares. Quando aprovada na reforma política em 2017, a lei foi elogiada até por quem hoje a critica: inteligente, dispensaria as emissoras de convidar candidatos com pouca relevância eleitoral aos quais os participantes não fazem perguntas. Ela faculta às emissoras de TV a palavra final. Amoêdo acha que a lei é boa e deve ser acatada se for convidado, aí a coisa estará legitimada. Mas se, ainda segundo a lei que é boa, ele for barrado, a lei boa não presta e ele promete recorrer à Justiça. Amoêdo poderia reivindicar sua participação, mas condicionar a legitimidade dos debates a ela equivale a escolher quais leis acatar. Novidade tão idosa quanto o próprio sistema.
Na semana passada, dei uma palestra na escola onde minha filha estuda. Trata-se de um projeto em que os pais são convidados para falar de sua experiência profissional a estudantes dos 2º e 3º anos do ensino médio. A conversa foi também interessante porque, sendo a maioria dos palestrantes composta por advogados, engenheiros, médicos, comerciantes e pequenos empresários, os estudantes se surpreenderam com uma revisora de textos, professora de português para estrangeiros e tradutora. A surpresa deles me animou. Eu os cativei relatando o início de minha formação com um professor de datilografia que falava “vamos aprendermos a batermos à máquina de escrevermos”. A sintaxe singular provocou risos e mencionei o curso de datilografia enquanto projetava cenas do filme “Jurassic Park”. Teve drama com final feliz também e suspense quando cenas de Hitchcock me ajudaram a contar como, já profissional experiente, esqueci num táxi as provas de um livro técnico sobre o qual assinara um contrato de sigilo comercial. E vocês aí achando que a vida de uma revisora é monótona.
De onde terá vindo tal resistência à lei num país em que, desde a promulgação da Constituição atual até julho de 2017, foram editadas 5.481.980 leis, segundo o site Poder360? Da indolência do indígena? Da malandragem do africano? Em Uma Breve História da Humanidade, Yuval N. Harari ensina que os homens respondem ao meio ambiente, que o modificam segundo suas possibilidades para atender suas necessidades, das imediatas como a sobrevivência, às mais sofisticadas como o desenvolvimento da religiosidade. A cada interpelação do meio, uma resposta dos respectivos povos. O general Hamilton Mourão, vice na chapa de Jair Bolsonaro, deu uma aula de baixa antropologia, de nenhuma sensibilidade política e de mera ignorância quando trocou o conhecimento por superadas teses cientificistas do século 19 para dizer, com desassombro perturbador, que parte de nossas mazelas resulta da indolência e da malandragem, legadas pelo índio e pelo africano. Para alguns que não veem a civilização como alternativa, Mourão e Bolsonaro são apenas uma dupla boa e sincera que nos resgataria da estupidez do politicamente correto, só que para a estupidez do simplesmente intolerável porque a parte boa não é sincera e a parte sincera não é boa: o resgate não passa pela civilização e é uma aposta na vocação do Brasil em naturalizar espantos.
O filme encantador “A Época da Inocência”, do Scorsese (cuja trilha sonora espetacular de Elmer Bernstein minha assistente-filha sugeriu sem margem para negociar que eu trocasse por “outra tipo menos nada a ver, mãe; não, sério”), conduziu o relato sobre minha indecisão em escolher entre continuar lecionando na rede estadual, a estudantes do curso noturno do ensino médio que trabalhavam nos quais eu revisitava a colegial que fui, e passar a lecionar para estrangeiros. Contei à jovem audiência (idade entre 15 e 17 anos) o que vi na rede pública, o flagelo que explica, a meu ver, em grande parte a desolação do ensino público: indivíduos sem vocação para o ofício que escolheram pelas comodidades de um cargo público que paga pouco, mas exige pouco. Não idealizo a profissão nem a vejo como missão: o professor é um profissional como qualquer outro que precisa trabalhar para sobreviver, mas em poucas profissões a vocação é tão determinante para a eficiência, é condição inerente ao ofício; do contrário, o aluno não se entusiasma pelo conhecimento, este perde valor e o professor, autoridade. A educação pública não terá conserto enquanto houver estabilidade para o professor e não se restabelecer a meritocracia para avaliar os alunos.
Mourão prova ser o vice ideal de um presidenciável que, ainda que alguns analistas o protejam de si mesmo enquanto expõem o país a uma figura tosca que ameaça presidi-lo, seu despreparo ficou evidente nas entrevistas no Roda Viva e na da GloboNews. Em que pesem a gravidade das revelações do jornalista Augusto Nunes sobre os rumos do programa da TV Cultura e a nota controversa que Miriam Leitão balbuciou, nenhum dos entrevistadores é candidato a presidente, por isso é preocupante que seu desempenho tenha recebido mais destaque do que o de Bolsonaro, aquele cuja foto é a que aparecerá na urna em outubro. No excelente A Imprensa Como Inimiga, publicado em sua coluna no Estadão, nesta segunda-feira, Vera Magalhães mostrou as coisas como são: a bisonhice acachapante de Bolsonaro explodiu na sua incapacidade de responder questões básicas sobre os desafios do próximo presidente, formatada numa postura reativa, típica de personalidades paranoides com uma compreensão conspiratória da história para justificar a caça ao contraditório, aspectos higienizados por parte da imprensa enquanto Bolsonaro e seguidores acusam a outra parte de inimiga e a qual ameaçam de retaliação se ele se eleger, o que os flagra ao lado de petistas num mesmo lócus extremista de indolência moral e malandragem autoritária: o problema, os extremos traduzem, não é a imprensa ter lado, mas que lado a imprensa tem.
Na seção de perguntas que encerrou a conversa com os colegas de minha filha, as eleições foram discutidas em razão das perspectivas da economia e do mercado de trabalho. Muitos estudantes com 16 anos vão votar e nenhum acha relevante a ditadura militar em debates ou em entrevistas dos candidatos, mas todos acham fundamental saber se quem repudia Maduro e Noriega também repudia Pinochet e Médici, se quem repudia terroristas repudia torturadores. Porque isso revela o caráter do candidato e este determina a distância que o país estará da civilização.