‘A cara do Brasil’, de J.R. Guzzo
TEXTO PUBLICADO NA EDIÇÃO DE VEJA DESTA SEMANA J.R. Guzzo A cena, registrada com fotos na semana passada em Brasília, poderia servir como um belo documento sobre os usos e costumes da vida política brasileira neste começo de século. Na área central do retrato, a presidente da República, Dilma Rousseff, afaga com a mão direita […]
TEXTO PUBLICADO NA EDIÇÃO DE VEJA DESTA SEMANA
J.R. Guzzo
A cena, registrada com fotos na semana passada em Brasília, poderia servir como um belo documento sobre os usos e costumes da vida política brasileira neste começo de século. Na área central do retrato, a presidente da República, Dilma Rousseff, afaga com a mão direita o rosto do ministro das Cidades, Mário Negromonte, no exato momento em que ele estava virando ex-ministro das Cidades. Um sorriso de beato ilumina o seu semblante ─ como se ele estivesse tomando posse no cargo, em vez de estar sendo demitido. O novo titular, deputado Aguinaldo Ribeiro, também em estado de graça, aguarda a sua vez de receber a bênção presidencial. Entre os grão-duques da política nordestina presentes à cerimônia, na qualidade de donos hereditários do atual Ministério das Cidades ─ Negromonte é da Bahia, Ribeiro vem da Paraíba, e ambos são do mesmo partido, o PP ─, dá para ver o senador José Sarney, vice-rei do Nordeste e do governo em geral, deslizando quietamente no cenário.
Deveria ser um momento de drama. Afinal, mais um ministro de estado, o sétimo em seguida deste governo, acabava de ser posto na rua por atolar-se em indícios de má conduta, e alguém com ficha limpíssima estaria vindo para consertar o desastre. Mas o que se podia ver, nesta fotografia do Brasil-2012, era uma comemoração. Em alegre harmonia, a presidente e seus parceiros pareciam estar dando o seguinte recado: “Atenção, respeitável público: garantimos que por aqui continua tudo igual”. Continua igual, em primeiro lugar, o que já se pode chamar de “sistema brasileiro” de mexer no ministério. Quando um ministro atinge uma cota crítica de “malfeitos” em sua área e precisa ser demitido, porque se tornou impossível, inútil ou simplesmente cansativo segurá-lo no emprego, é obrigatório nomear para seu lugar alguém que seja uma fotocópia dele ─ mesmo partido, mesma região, mesmo estilo e mesma folha corrida. Há uma salva de palmas para o ministro que sai, outra para o que entra e todo mundo fica aliviado, porque não há perigo de mudar nada. Continua igual, acima de tudo, a privatização do estado brasileiro, com áreas inteiras da máquina pública transformadas em propriedade particular de partidos e de políticos que apoiam o governo, mais suas famílias, amigos e redondezas. É a cara do Brasil de hoje.
O ex-ministro Negromonte, como os companheiros de infortúnio que o antecederam, viveu nas últimas semanas um processo de torrefação acelerada, por conta de suspeitas cada vez mais feias e cada vez menos explicadas; também como os outros, começou “blindado” e acabou virando farinha de rosca. Para seu lugar, privatizado pelo governo em favor do PP, foi nomeado praticamente um sósia. O homem já vem carimbado na frente e no verso. Está envolvido no tráfego de dinheiro público, por via de “emendas parlamentares”, em favor da mãe, prefeita de uma cidade da Paraíba, e da irmã, deputada estadual e possível candidata à prefeitura de outra. Não declarou à Justiça eleitoral nas últimas eleições, como era obrigado a fazer, a propriedade de quatro empresas. Tem duas emissoras de rádio, sempre na Paraíba, registradas em nome de pessoas ligadas a ele ─ um assessor e um ex-contador. Emprega em seu gabinete de deputado um primo que não bate ponto em Brasília; ele mora na Paraíba, onde, aliás, é dono de uma construtora. (O novo ministro acha que não há nada de mais nisso: segundo explicou, primo é parente “de quarto grau”.)
Num país com 190 milhões de habitantes, a presidente Dilma Rousseff não encontrou ninguém melhor que esse deputado Aguinaldo para o seu Ministério das Cidades; no Brasil de hoje, ao que parece, uma ficha como a sua é recomendação, e não problema, para nomear um ministro de estado. É triste, mas o que se há de fazer? O cargo pertence ao PP, e foi ele que o PP escolheu. Pior ainda é a história da Casa da Moeda, a mais recente na coleção de verão do governo; não deu nem para fingir, aí, que existe algum tipo de autoridade pública na repartição que fabrica todo o dinheiro do país. Seu presidente, Luiz Felipe Denucci, foi subitamente para o espaço, ao se descobrir a movimentação de 25 milhões de dólares em contas de empresas que ele mantinha em paraísos fiscais. O que esse cidadão estava fazendo lá? Ninguém sabe. O cargo é do PTB; o ministro da Fazenda, Guido Mantega, disse que nunca tinha falado com ele, nem sequer visto sua cara, antes de assinar sua nomeação para presidir a Casa da Moeda ─ um caso único no mundo, sem dúvida.
Estamos, de fato, em plena privatização.