Em ‘Blitz’, David Trueba desafia os tabus dos relacionamentos
O segundo livro do diretor espanhol lançado no país chega às livrarias na próxima segunda (18)
Um jovem paisagista tenta curar um coração partido e se debate com o – ainda – tabu de se envolver com alguém da terceira idade. A novela Blitz (Tusquets, 144 págs., R$ 34,90), do escritor David Trueba, joga para o público uma narrativa cortante (“blitz”, vale lembrar, é relâmpago em alemão), que descortina novas possibilidades sem rodeios.
Mais conhecido por seu trabalho no cinema, Trueba, que dirigiu o premiado Viver É Fácil Com Os Olhos Fechados (e também é ator, roteirista e jornalista), anuncia a que veio com a epígrafe da poetisa americana Emily Dickinson:
“Como a meninos se explica o relâmpago
De modo a sossegá-los –
A Verdade há de deslumbrar aos poucos
Os homens – p’ra não cegá-los.”
Confira o quarto capítulo de Blitz, que chega às livrarias na próxima segunda-feira (18).
Para ela, nossa geração era feita de crianças mimadas, incapazes de enfrentar dificuldades, acostumadas a distorcer todos os direitos conquistados pelo suor de nossos avós e pais e transformá-los em privilégios irrevogáveis.
“Abril
No trabalho conheci Anabel. Ela era responsável pelas contas do escritório, mas era uma arquiteta de bom gosto, que falava rápido e com uma ironia afiada. Tinha uns óculos que maltratava muito, jogava-os com força em cima da mesa, arrancava-os para gesticular, apontava coisas com eles e às vezes até desenhava no papel com um movimento rápido, usando as hastes como lápis. Suas ideias e correções quase sempre eram enriquecedoras. Sabia que eu estava procurando um quarto para alugar na cidade, o salário não dava para um apartamento inteiro, de modo que se ofereceu para dividir comigo. Anabel era lésbica e proprietária de um enorme apartamento no Ensanche, comprado em seus lucrativos anos dedicados à publicidade. Podia me ceder a ala do fundo sem que um interferisse demais na vida doméstica do outro. De vez em quando, ela dormia com meninas muito jovens e belas que passavam seminuas pelo corredor e pela cozinha, e eu as observava à distância, como um fantasma que espreita a vida real sem poder esticar o braço e tocá-la com a ponta dos dedos.
Anabel era muito crítica e categórica. Para ela, nossa geração era feita de crianças mimadas, incapazes de enfrentar dificuldades, acostumadas a distorcer todos os direitos conquistados pelo suor de nossos avós e pais e transformá-los em privilégios irrevogáveis. A gente se recusa a enxergar que a Europa, para não dizer a Espanha, não é mais o centro do mundo, ela me dizia às vezes no escritório, e só vamos perceber isso quando a realidade bater na nossa cara. Todos deprimidos e tristíssimos, dizia, apontando para os mais jovens, procurando a quem culpar por maus-tratos psicológicos. E então ria, com uma risada escandalosa. Vão processar papai e mamãe por terem trazido os pobrezinhos ao mundo, você vai ver.
Sabe, essa sensação de cansaço e tédio depois do prazer, com esse egoísmo fisiológico que te faz querer que a pessoa a seu lado desapareça agora que você está satisfeito? (…) Assim sou eu, uma espécie de vampiro em busca de sangue jovem. Anabel disse isso tudo, e não parecia feliz.
Um dia, Anabel me confessou que ela era uma espécie de vampiro. Eu sou, disse, uma espécie de vampiro. Estávamos tomando café juntos num domingo. Costumava roubar para mim a edição internacional do New York Times no hotel de luxo que ficava a duas ruas de nossa casa, e naquele dia havia se despedido de uma de suas meninas e voltado com umas ensaimadas e o jornal, que eu desdobrava como um lençol de felicidade. Quando pronunciou a frase deixei que um canto do jornal se dobrasse para prestar atenção nela.
Preciso da beleza e da juventude para continuar me sentindo viva. Referia-se às meninas com as quais mantinha relações breves e que mandava embora de casa sem muitos problemas após algumas semanas, meninas sempre cheias de luz e energia, que talvez estivessem descobrindo a si mesmas na relação com Anabel. Eu assistia, achando graça do discurso de Anabel com seus grunhidos, depois de fazer amor sempre lhe vinha um mau humor descarado, que ela definia como seu lado masculino. Tenho orgasmos de homem, disse, nesse mesmo dia. Sabe, essa sensação de cansaço e tédio depois do prazer, com esse egoísmo fisiológico que te faz querer que a pessoa a seu lado desapareça agora que você está satisfeito? E que te deixe logo em paz, porque seu ideal não é prolongar a relação, e sim voltar para sua sepultura até acordar para uma nova aventura, diferente. E depois outra, e mais outra. Assim sou eu, uma espécie de vampiro em busca de sangue jovem. Anabel disse isso tudo, e não parecia feliz.”