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A Origem dos Bytes

Por Filipe Vilicic Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Crônicas do mundo tecnológico e ultraconectado de hoje. Por Filipe Vilicic, autor de 'O Clube dos Youtubers' e de 'O Clique de 1 Bilhão de Dólares'.
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Os apps de “embelezamento” e a nova era do autoengano

Ou: como alguns acham que enganam os outros com selfies photoshopadas postadas no Instagram?!? Só dá certo quando deixam de andar pelo mundo real

Por Filipe Vilicic Atualizado em 9 mar 2018, 17h57 - Publicado em 9 mar 2018, 17h47

É claro que não é de agora que as pessoas se enganam. Na filosofia, o autoengano já foi assim descrito: “Quando A simultaneamente acredita que p é falso e que o mesmo p é verdadeiro”. Como isso seria possível? Aposto que lá na pré-história um cara qualquer já passava por uma situação como essa: Depois de meses só comendo a carne de uma caça bem feita, sem sair atrás de novas presas, ele viu sua barriga crescer muito em efeito do sedentarismo, criando aquela barriguinha de chope (ou, melhor, de excesso de picanha de mamute). No entanto, quando decidiu por desenhar na parede da caverna como era o bando de caçadores ao qual pertencia, retratou todos esguios, em forma, para que essa fosse a imagem passada adiante. Ou seja, ele sabia que estava acima do peso, só que, mesmo assim, quis desenhar sua selfie como se estivesse magrão. Assim certificando a célebre frase do alemão Otto von Bismarck (1815-1898), provavelmente o segundo líder mais famoso da história daquele país: “As pessoas nunca mentem tanto quanto depois de uma caçada, durante uma guerra e antes de uma eleição”.

O autoengano sempre esteve conosco. Somos seres que, dizem os estudos, ouvem 100 lorotas todos os dias. Isso cada um de nós. No entanto, isso é o que dizem as pesquisas de décadas atrás, nos tempos analógicos. Aposto que, hoje, esse número seria multiplicado várias vezes ao se analisar quanto somos ludibriados no Facebook, no Twitter, no Instagram. Ou, ainda, o quanto tentam nos enganar na internet, como um todo.

As selfies, por exemplo, se configuram dentre os maiores embustes das redes sociais. Quando alguém se autorretrata, raramente o faz para exibir seu verdadeiro eu a outrem. O intuito usualmente é o de ostentar aquele que se queria ser. Basta o mínimo de noção de psicologia para saber a enorme diferença entre quem se é e quem se quer ser. Na internet, não vale o primeiro. A batalha é para, por meio de selfies, tentar provar aos outros que se é algo vislumbrante, mesmo que irreal.

O ápice desse tipo de enganação no mundo facebookiano é traduzido pelos aplicativos de transformação de rostos e de corpos. Não aqueles que nos deixam com caretas engraçadas, máscaras e afins. Mas os que prometem – vendem-se assim, pois é – “emagrecer”, “tirar espinhar”, “melhorar o rosto”, “acabar com olheiras”. Um dos mais novos desses é um que garante que transforma a barriga de chope naquele tanquinho six-pack tão cobiçado. Todavia, as opções vão muito além. São populares os que alisam a pele, dão brilho aos fios capilares, o que for. Quer ficar bonito na foto? Tem um app pra isso.

Porém, vale um aviso. Acha que está enganando a todos com a tática da selfie manipulada? Não. Um dos poucos que caem na farsa é… você mesmo. E só mais alguns que deslizam a timeline para baixo sem pensar muito.

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Isso porque os aplicativos não são tão bons quanto prometem ser? Não é bem isso. Sim, basta uma olhada minimamente atenta para perceber que teve uma photoshopada na selfie publicada por uma tia, ou tio, no Instagram. Mas o buraco no caminho dessa mentira é outro. Você acha, mesmo, mesmo (?!?!?), que quem te vê na vida real não irá sacar que tu tá mais gordinho(a) do que na foto postada ontem?

Então, a manipulação de selfies assim deixa de ser um ato de mentira pura. Passa a se transformar numa síndrome de autoengano. Sabe-se que aquela foto não representa quem se é de verdade. Mas se insiste em sua publicação, acreditando que ela pode representar ao mundo o que se é. No conceito “Quando A simultaneamente acredita que p é falso e que o mesmo p é verdadeiro”, você se torna A, enquanto a selfie é o p.

Só que há uma perigosa diferença do autoengano na era das redes sociais para o com o qual sempre estivemos acostumados. No Facebook, o efeito é quase que instantâneo. Enquanto o homem da caverna deixava sua imagem nas paredes para serem vistas, sei lá, por um garoto que passasse por lá uns dias depois, e este nem saberia direito de qual nômade seria aquela figura, hoje a selfie postada logo ganha curtidas, reações, compartilhamentos. Isso faz com que se postem mais fotos mentirosas, com mais curtidas (estas, convenhamos, de cunho jocoso, ou de apoio, ou de quase dó), e assim se cria um círculo vicioso.

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Um círculo que pode levar a extremos. Uma conhecida, por exemplo, fingiu por meses que estava correndo maratonas, havia emagrecido e arranjado um novo emprego. Alguns até caíram na invencionice. Como? Pois a conhecida mal saia de casa, não dava mais as caras no mundo real, com receio, soube-se depois, de que desvendassem sua artimanha. Para sair bem na selfie, isolou-se, levou-se à depressão. Ela passou a viver só no virtual. No Instagram.

Distúrbios esses que ainda são contaminantes. Tanto para aqueles infectados pelos vírus dos apps mentirosos de embelezamento de faces e corpos, quanto para os que, mesmo que em mais um ato de autoengano, se forçam a acreditar na vida falsa do outro. Ao ver o amigo ou colega de Instagram “magro”, com pele “lisa”, e ainda na academia, numa viagem, numa maratona, com cara de feliz, pode-se sentir um dos mais humanos dos sentimentos… a inveja. Como constatou um estudo ainda em 2013, essa, afinal, se trata da emoção mais frequente nas redes sociais – se tal pesquisa fosse feita hoje, aposto que a inveja se mostraria ainda mais constante no âmbito do online.

Em qual tipo de ser estamos nos transformando, assim, nessas ágoras digitais? Se continuar o fluxo de vidas mentirosas, provavelmente teremos dois típicos habitantes da população das redes (claro, com exceções ilustres, como sempre foi na humanidade).

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De um lado, aqueles solitários, que de seus smartphones tiram selfies manipuladas para exibir bundas photoshopadas, olhos de outras cores e rostos de pele perfeita no Instagram. Esses, sozinhos no mundo de carne e osso, talvez até conquistem milhares de seguidores (será que muitos dos quais comprados?) com suas falsas belezas, estampadas na aba “explorar” de desconhecidos. Já do outro lado, haverá os invejosos, depressivos por acharem que a própria vida não é tão bacana quanto a de outrem – o mentiroso compulsivo online, cuja própria vida também não é lá essas coisas. E os lados por vezes se misturam: alguém pode se ver tanto como o falsificador de selfies quanto como aquele que inveja as imagens vendidas pelos amigos e colegas facebookianos e/ou instagramers.

O fim da história, num extremo, seria separar o mundo, o real, o que pisamos com nossos pés, em dois. Um povoado por aqueles que ainda insistiriam em tocar suas rotinas como sempre foi, apalpando coisas físicas, encarando-se no espelho – e só às vezes acessando essas tantas redes. Outro, o no qual se isolariam os seres virtuais, com seus avatares perfeitos; quem sabe esses até pudessem inventar uma forma de reprodução digitalizada, para nem para isso terem de sair de seus casulos no Instagram.

*** O autoengano, claro, não se restringe a nossas peles, caras e corpos. Ele se dissemina como epidemia pela internet. Outro exemplo: aqueles que dizem estar informados sobre tudo o que acontece no planeta, sem nem ler um jornal, uma revista, um livro, ou ver um documentário, o que for; só se dizem cientes pelas manchetes (muitas das quais, falsas) com as quais esbarram no Facebook. O autoengano, nisso, está em saber que se é, na real, um ignorante desinformado guiado por boatos e mentiras; mas, mesmo assim, tentar vender a imagem de “estou por dentro de tudo”.

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Uma situação exemplar disso foi uma testemunhada por mim, no dia de hoje, no elevador de um prédio comercial. Confira a conversa real (e um tanto depressiva, pelo ponto de vista deste colunista) de quatro colegas de trabalho:

Fulano X — Cara, outro dia li no jornal uma notícia sobre a filha de Z. Chegaram a ver isso?
Fulano Y (em justificativa — será? — da ignorância sobre o fato) — Olha aí o X. Ele lê jornal ainda. Deve ser o único. Devem imprimir o jornal só pra ele ler.
Fulano H — (risadas)
Fulano P — (olhava o celular)
Fulano X — Como fazem para se informar? Internet?
Fulano Y — Facebook, né?
Fulano P — (continuava no celular)
Fulano X — Mas vocês viram a notícia?
(primeiro, ninguém responde)
Fulano P — Não tô achando no Google.

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