A doutora mentirosa pode destruir a imagem da ciência brasileira
Ao não explicar lorotas, como a de um falso diploma de Harvard, Joana D’Arc Félix dá munição a obscurantistas que atacam professores e alunos do país
Emocionei-me, com direito a lágrimas, na primeira vez em que li a história de Joana D’Arc Félix de Souza em VEJA. Era fantástica a saga da menina pobre que aprendeu a ler aos 4 anos de idade, passou na Unicamp aos 14, encarou o racismo no Brasil e nos Estados Unidos, conquistou pós-doutorado em Harvard e teria decidido voltar ao seu país para se dedicar à educação de adolescentes em situações de vulnerabilidade social. Nos últimos dias, descobriu-se que quase todos os elementos fantásticos de sua trajetória não passavam de mentira. Ela não tem diploma de Harvard, não entrou na faculdade aos 14, nem conta com a quantidade de patentes que dizia ter registrado e, como cereja do bolo de falácias, ainda está devendo dinheiro que captou por não ter prestado contas à Fapesp. Quando a repórter Jennifer Ann Thomas, da equipe em VEJA da qual sou editor, voltou a falar com a química, esperava-se que ela admitisse a série de mentiras e se justificasse – seja lá com quais desculpas ou razões. Porém, fez e continua a fazer o contrário disso. O que tem representado uma agressão à imagem da ciência brasileira.
“Eu não menti”. Afirmou Joana à repórter. Ela continuou a insistir que seria apenas algo como um pequeno exagero ter forjado sua saga de superação. Pequeno? Ludibriou aqueles que a chamaram a fazer palestras justamente por acreditarem em suas mentiras. Isso até em TEDx. Enganou os que deram espaço à sua voz na mídia. Iludiu também jovens que podiam ver nela inspiração para também chegarem tão longe quanto Harvard. Trapaceou, de tantas formas.
Após as revelações, caso ela simplesmente tivesse admitido a encenação, seria mais aceitável. Todavia, continua a insistir na mentira. Mente até ao afirmar “não menti”.
Com isso, prejudica em demasia a imagem da ciência brasileira. Imagem esta que já tem sofrido agressões o suficiente, de muitos lados, inclusive do presidente Jair Bolsonaro e dos seus – em mais uma situação quase kafkaniana (ou seria kaftaniana, hein?) de nossos tempos, também do próprio ministro da Educação, Abraham Weintraub.
Os que não frequentam a academia – e que dificilmente passariam na USP, na Unicamp ou em Harvard – insistem em julgar pesquisadores como “idiotas” ou “idiotas úteis”. Com suas falácias, Joana D’Arc Félix de Souza dá munição aos obscurantistas. Assim, concede desculpinhas àqueles que querem ver como enganadores, limitados ou não produtivos nossos cientistas, filósofos, estudiosos.
Se assumisse seus desvios, Joana talvez conseguisse exibir a quem soube de suas lorotas que ela é a exceção, não a regra. Que há incontáveis cientistas brasileiros sérios à frente de trabalhos igualmente sérios.
Mais que isso, se admitisse e se explicasse, aposto que teria maior chance de reerguer a si e a seu projeto de ensino a crianças em situação de vulnerabilidade. Em vez de continuar a queimar o filme de si e de sua iniciativa social – esta, sim, admirável, até onde se sabe do que é verdade –, assim se portaria com honestidade, para variar um pouco. E exporia como, mesmo sem o verniz todo que passou sobre si, ainda se manteria como exemplo de resiliência e superação.
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Só que ela não para de mentir. E não para de tentar driblar perguntas com desculpinhas. Se continuar assim, passará de heroína da ciência a vergonha e, ela mesma, uma agressora do trabalho de professores e alunos que se levam a sério. O maior risco é alguns passarem a tê-la como exemplo típico da academia brasileira. Em vez de se recordarem de bons nomes, do passado e de agora, como Duília de Mello, Milton Santos, Walter Neves, Mayana Zatz, Marcelo Gleiser, Artur Ávila, Oswaldo Cruz, César Lattes, Carlos Chagas, Vital Brazil, Johanna Döbereiner etc., etc. e etc.
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