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A boa e velha reportagem

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O homem que se arrepende de ter iniciado a Primavera Árabe

De todos os países da Primavera Árabe, a onda de protestos que levou à deposição de ditadores e a guerras civis no Oriente Médio e no Norte da África, a Tunísia é o único que trilhou um caminho democrático e razoavelmente pacífico. Foi lá, também, que tudo começou. A fagulha dos protestos foi a autoimolação, […]

Por Diogo Schelp Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 23h55 - Publicado em 27 fev 2016, 08h40
Autoimolação

Hosni Kaliya foi um dos dois tunisianos que atearam fogo ao próprio fogo, motivando os protestos de 2011 (Reprodução da reportagem em Spiegel Online)

De todos os países da Primavera Árabe, a onda de protestos que levou à deposição de ditadores e a guerras civis no Oriente Médio e no Norte da África, a Tunísia é o único que trilhou um caminho democrático e razoavelmente pacífico. Foi lá, também, que tudo começou.

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A fagulha dos protestos foi a autoimolação, em dezembro de 2010, do vendedor de frutas tunisiano Mohamed Bouazizi, na cidade de Sidi Bouzid (visitei o lugar dois anos depois, e o resultado é a reportagem que pode ser lida aqui). O gesto desesperado do ambulante desencadeou uma onda de manifestações de rua e acabou por derrubar o ditador do país, Zine El Abidine Ben Ali, no poder havia 23 anos.

Bouazizi morreu, mas ele não foi o único a atear fogo ao próprio corpo. Hosni Kaliya, um porteiro de hotel, fez o mesmo no dia 6 de janeiro de 2011. Kaliya era um privilegiado comparado aos amigos que viviam na sua cidade natal, Kasserine, vizinha a Sidi Bouzid. Ele tinha um emprego na capital, e ganhava razoavelmente bem no setor de turismo. Seu gesto extremo foi uma reação à humilhação imposta por um grupo de policiais que o espancaram sem nenhum motivo, durante uma visita que ele fez a Kasserine. Kaliya prestou queixa na delegacia, mas um dos policiais agressores o identificou na rua e deu-lhe uma nova surra. Sem ter a quem recorrer, Kaliya comprou uma garrafa de gasolina com o intuito de jogar um coquetel molotov nos policiais. Mas ele viu que não tinha chances de colocar o plano em prática e, em vez disso, despejou o líquido sobre o próprio corpo e acendeu o isqueiro. A notícia de que mais um cidadão havia se incendiado em protesto contra a repressão policial alimentou ainda mais a fúria dos jovens que tomavam as ruas tunisianas. Nos dias que se seguiram, mais de 20 manifestantes foram mortos pela polícia. Kaliya foi internado no mesmo hospital em Túnis onde Bouzid morrera três dias antes. O ditador Ben Ali fugiu do país em 14 de janeiro.

O jornalista Clemens Högens, da revista alemã Der Spiegel, entrevistou Kaliya em Kasserine (a versão em inglês da reportagem pode ser lida aqui). Ele descreve o rosto, a cabeça e as mãos desfiguradas de Kaliya, e sua frustração com os rumos que a Primavera Árabe tomou. “Foi tudo um equívoco. Eu não sabia o que ia acontecer. Eu não acredito mais na revolução”, disse o tunisiano ao repórter alemão. Ele conta que não estava querendo ser um mártir, nem passar uma mensagem política quando se incendiou. Simplesmente não aguentava mais a humilhação.

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Segundo Högens, Kaliya ficou em coma durante oito meses. Quando recobrou a consciência, os protestos já se haviam espalhado por toda a região. A Líbia estava no auge de sua guerra civil. A Síria ia pelo mesmo caminho. O ditador Hosni Mubarak havia sido deposto no Egito. Os protestos também aconteceram no Líbano, na Arábia Saudita, no Bahrein, no Iêmen, no Marrocos, na Jordânia… Kaliya também recebeu a notícia de que onze de seus amigos e parentes haviam morrido no levante tunisiano. Seu país mudou politicamente, mas a situação econômica continua desesperadora — e vem sendo agravada pelos atentados terroristas, que espantam os turistas estrangeiros.

No ano passado, o irmão mais novo de Kaliya, Saber, perdeu o emprego. Depois de três meses tentando recuperar o posto, ele repetiu a insanidade do irmão: comprou gasolina e ateou fogo ao próprio corpo. Saber morreu em outubro passado.

Diante da dor de perder o irmão e da convicção de que o próprio sofrimento não levou a nada, Hosni Kaliya só vê uma saída: “Eu queria poder morrer.”

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Foi só o que restou da Primavera Árabe: desesperança.

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