Episódio 2: A nudez de Kiki de Montparnasse
A relação entre uma das divas mais cobiçadas dos Années Folles, o mais celebrado Tarzã do cinema e os campeões de natação
Paris sedia os Jogos Olímpicos pela terceira vez – a primeira foi em 1900. Depois, em 1924. O que esse blog pretende fazer – até o dia do encerramento, em 11 de agosto – é buscar uma história de 100 anos atrás e costurá-la com um evento ou uma prova de agora. A cada postagem uma piscadela para ontem e outra para hoje. A regra: só valem fatos de 1924, de janeiro a dezembro. O primeiro capítulo tratou do Movimento Surrealista e da cerimônia de abertura. Este segundo dá um passo para a frente.
Um acontecimento de 1924…
O fotógrafo americano Man Ray, nascido Emmanuel Radnitzky, americano do Brooklyn nova-iorquino, já não cabia em si e, na falta de perspectiva de sua turma americana, andava borocoxô. Não teve dúvida, pegou um navio, sua coleção de câmeras Leica, as pouquíssimas tralhas, e em julho de 1921 desembarcou em Paris. Batia ponto nos cafés do Boulevard du Montparnasse, como o La Rotonde, logo ao chegar, e depois no The Jockey, inaugurado em 1923. Não demorou para se aproximar dos dadaístas – trupe que, depois de tomar alguma coisa a mais, fumar alguma coisa a mais e cheirar alguma coisa a mais, acabou partindo para um outro movimento, o surrealista – aquele do manifesto de André Breton. Logo Man Ray conheceu Alice Ernestine Prin, a Kiki de Montparnasse. Ficaram amigos e depois amantes, ao som de jazz. Modelo cobiçada, ela tinha pousado para Soutine, Utrillo, Modigliani e muitos outros. Aparecia nua, invariavelmente. Vangloriava-se de raramente usar peças íntimas. Vivia no demi-monde da prostituição. E então, em junho de 1924, o americano publicou na revista Littérature a mais famosa de suas imagens: Le Violon d’Ingres. A modelo: Kiki, claro. Ele tinha 27 anos. Ela, 23. Kiki está nua da cintura para cima, de turbante, numa posição que remete aos quadros de Jean-Auguste Dominique Ingres (1780-1867), pintor que apreciava música. Man Ray ampliou a referência ao rabiscar com nanquim – ou foi carvão? – os dois efes, como as aberturas acústicas de um violino nas costas da mulher. Aquela fotografia venceu o tempo. Uma de suas impressões foi leiloada em 2022 por 12,4 milhões de dólares – recorde inatingível, o mais caro retrato de todos os tempos.
Costas como as de Kiki, mais famosas até do que as dela, naquele 1924 olímpico, só mesmo as do nadador Johnny Weissmuller, nascido János Weißmüller, romeno radicado nos Estados Unidos. O futuro Tarzan do cinema ganhou as medalhas de ouro nos 100 metros livres, nos 400 metros livres e no revezamento 4 x 100. Era uma festa. Entre uma medalha e outra, Weissmuller fazia apresentações artísticas de força e beleza para plateias que não tinham acompanhado as provas olímpicas. Era uma estrela de Hollywood avant la lettre.
… E um (ou dois) de agora
Costas como as de Johnny Weissmuller, duradouras como as de Kiki de Montparnasse, são as da australiana Ariarne Titmus, de 23 anos, a favorita para o ouro na final dos 400 metros livres deste sábado, 27 – embora seja vital sempre prestar atenção na fenomenal americana Katie Ledecky e na adolescente canadense Summer McIntosh. Titmus, voltemos a ela, bateu o recorde mundial da prova em junho do ano passado. Depois, atravessou um calvário pessoal. Ao tratar de uma lesão nos quadris, após um exame de ressonância magnética, descobriu um tumor benigno no ovário direito. “Ser uma atleta é difícil, ser mulher é difícil”, escreveu em suas redes sociais. Quer Ariarne ganhe, quer não fique com o ouro, é bom sempre acompanhar seu treinador, o impagável e cabeludão Dean Roxall, que dança e se agita como ninguém. O fotógrafo surrealista Man Ray faria um carnaval em preto e branco com um sujeito desses. Nas mãos de Salvador Dalí então…
Viremos Kiki de Montparnasse de frente. O rosto dela, pálido, os cabelos curtos e lábios desenhados, foi uma das marcas estéticas da Paris que dançava em 1924, embebida de absinto. Escreve a historiadora Myriam Juan em Les Années Folles: “Os cabelos negros cortados à la garçonne, os olhos pesadamente sublinhados de khôl, os lábios finos pintados de vermelho vivo, Kiki encarnava visualmente – quase graficamente – a época”. Ninguém nunca disse isso, mas que fique anotado: a logomarca de 2024 remete a silhuetas como as de Kiki, sinônimo de novos tempos, de liberdade feminina – em trajetória de direitos que começou lá atrás, há 100 anos, muito lentamente, mas muito lentamente, e que precisa ir longe ainda, mal saiu da adolescência. Um logo apenas não move montanhas. Como os parisienses são dados a ironia cortante, adoram uma provocação que produza cizânia, há quem veja no desenho uma outra coisa, a marca da chama vermelha e azul do Rassemblement National, o antigo Front National, o estúpido partido de extrema direita de Marine Le Pen. Bobagem. É Kiki quem está lá, como violino que ainda ecoa.
No episódio de amanhã, 28 de julho: quem hoje faria “sombra” com o campeão da “geração perdida”?