Por que as turbulências imprevisíveis se tornam cada vez mais comuns
A sucessão de casos não é coincidência, segundo recentes estudos
De Gabriel García Márquez (1927-2014), o colombiano Nobel de Literatura: “O único medo que nós, latinos, confessamos sem vergonha e até com um certo orgulho machista é o medo de avião. Talvez porque seja um medo diferente, que não existe desde nossas origens, como o medo do escuro ou o próprio medo de que se perceba que sentimos medo. Pelo contrário: o medo de avião é o mais recente de todos, pois só existe a partir do momento que se inventou a ciência de voar”. E dá-lhe aflição e paúra modernas quando brota uma turbulência, momento em que as aeronaves entram em um fluxo de ar caótico e irregular. É ruim mesmo sentir o corpo balançar para cima e para baixo, mesmo estando preso à cadeira por um cinto de segurança.
De algum tempo para cá, inúmeros episódios de desconforto aéreo ganharam as manchetes. No fim de junho, um Boeing 787-9 que levava 325 passageiros de Madri, na Espanha, rumo a Montevidéu, no Uruguai, chacoalhou violentamente poucas horas depois de decolar do aeroporto de Barajas. Após a parada de emergência, em Natal, no Rio Grande do Norte, deu-se o resultado do desastre: além de uma pessoa sem cinto arremessada ao teto, ao menos trinta tiveram ferimentos e quatro foram internadas na Unidade de Terapia Intensiva de um hospital da capital potiguar. Em maio, um voo da Singapore Airlines, também um Boeing, que saíra de Londres em direção a Singapura, despencou 54 metros em menos de cinco segundos, pouco tempo depois de sair do aeroporto de Heathrow. No pouso de emergência, em Bangcoc, na Tailândia, o saldo: um passageiro morto e 28 internados.
A sucessão de casos não é coincidência, segundo recentes estudos. O aquecimento global tem aumentado drasticamente o número das chamadas turbulências de ar claro (CAT, na sigla em inglês), perturbações invisíveis para satélites e sensores meteorológicos, mas que são capazes de causar solavancos intensos nas aeronaves. Uma investigação realizada pela Universidade Reading, no Reino Unido, mostra que a ocorrência de formas graves desse tipo de fenômeno aumentou muito nos últimos cinquenta anos, enquanto os eventos leves cresceram de forma moderada (veja no quadro). “Após uma década de trabalho, temos evidências concretas de que o fenômeno é real”, diz o climatologista Paul Williams, que conduziu o levantamento.
Há solução? Sim, e em belo movimento da ciência, ela pode vir do mundo animal. Para além dos bicos e asas, que inspiram o formato dos aviões desde Santos Dumont, as pesquisas sobre como os pássaros enfrentam turbulências inspiram novas mudanças. O segredo dos bichos para enfrentar a agitação está no controle da rigidez das asas, capaz de amortecer o impacto das variações repentinas. No futuro, mecanismos semelhantes poderão ser adotados pela aviação. “A rigidez das aeronaves transmite toda a carga da turbulência aos passageiros”, disse a VEJA James Rojas Waterhouse, professor do Departamento de Engenharia de São Carlos, da Universidade de São Paulo (USP). “Há protótipos com dispositivos de amortecimento, mas ainda são inviáveis economicamente.”
Em teste recente, sensores acoplados a aves revelaram a capacidade de algumas espécies de voar por quilômetros em meio aos alvoroços. Um condor-dos-andes, por exemplo, animal que habita faixas próximas das aeronaves, quebrou recordes ao planar por mais de cinco horas ininterruptas, sem bater as asas uma única vez, a 6 quilômetros de altitude. Olhar para o céu, portanto, pode vir a representar resposta a enigma ainda obscuro mesmo para os modelos matemáticos mais avançados. Buscam-se, também, mecanismos que permitam identificar o balanço com quilômetros de antecedência, com o uso de laser.
Tudo somado, apesar dos sustos, não é o caso de desistir de aviões. As turbulências podem, sim, causar danos às aeronaves, mas voar nunca foi tão seguro — é mais perigoso andar de carro. Contudo, cabe prudência. Com as mudanças climáticas em ritmo acelerado e sem previsão de arrefecimento, sinônimo de irresponsabilidade da civilização, é provável que os fenômenos extremos se tornem ainda mais comuns. Vale cobrar as autoridades por respostas contundentes e investir em tecnologias que garantam melhor segurança. Enquanto isso não acontece, vale sempre seguir os conselhos do comandante e ter a certeza que logo, logo a turbulência passa. E, como na prosa de García Márquez, não é preciso ter vergonha de sentir medo.
Publicado em VEJA de 12 de julho de 2024, edição nº 2901