O que ensinam as estruturas urbanas descobertas na Amazônia boliviana
Elas provam que civilizações antigas podem trazer lições valiosas sobre o convívio com a natureza
A sociedade costuma associar tecnologia a ferramentas capazes de moldar o futuro. Trata-se de uma percepção limitada. Cada vez mais, seu uso na exploração do passado tem levado a revelações surpreendentes. Prova disso é a descoberta de construções de uma antiga civilização em plena Amazônia, feito possibilitado pelo emprego de lasers de alta potência pelos arqueólogos. No fim de maio, um estudo publicado na revista científica Nature expôs a existência de dois grandes sítios arqueológicos, de 147 e 315 hectares (um campo de futebol tem cerca de 1 hectare), em uma região conhecida como Llanos de Mojos, na porção sudoeste da Amazônia boliviana. Neles, foram encontradas estruturas arquitetônicas compostas de pirâmides cônicas de até 22 metros de altura, além de mecanismos projetados para gerenciar sistemas de água, como canais e reservatórios, e plataformas cerimoniais. Restos arqueológicos semelhantes foram desvendados no Sri Lanka, no Sudeste Asiático e na América Central. O novo eldorado perdido em plena selva abre perspectivas para o estudo de civilizações antigas.
As construções pertenciam à cultura Casarabe, uma civilização que teria vivido entre os anos 500 e 1400 d.C. — ou seja, antes da chegada dos espanhóis ao continente. Pesquisas já haviam apontado indícios de urbanismo tropical na região, inclusive no Xingu, na Amazônia brasileira, e varreduras anteriores mostravam que o local era ocupado por agricultores que cultivavam uma variedade de alimentos, sendo o principal deles o milho, e que também se baseavam na caça e na pesca. Agora, além dos dois novos sítios, onze zonas arqueológicas foram mapeadas pelos especialistas. Para eles, as descobertas parecem se tratar, entre outras surpresas, de túmulos e locais propícios para rituais, indicando que os Casarabe formavam uma sociedade complexa.
Os achados dos pesquisadores da Universidade de Exeter, no Reino Unido, que lideraram o estudo, foram impulsionados pelo uso do LiDAR, processo em que pulsos de laser são empregados como detectores, ultrapassando folhas e galhos da densa Floresta Amazônica e revelando detalhes sobre um lugar. A partir dos dados coletados pelos feixes de luz, é possível produzir mapas tridimensionais que permitem a exploração de estruturas há muito escondidas pelo tempo e pela natureza. “Existe uma nova civilização, uma nova cultura, apenas esperando que as estudemos”, afirmou Heiko Prümers, do Instituto Arqueológico Alemão, em um vídeo produzido pela Nature. “Para mim, é um sonho que se tornou realidade.” Segundo Prümers, sem o LiDAR seriam necessários cerca de 400 anos de escavações para encontrar as estruturas detectadas pelos lasers.
O LiDAR foi utilizado em diversas outras expedições arqueológicas, e os resultados têm sido impactantes. Na década passada, arqueólogos que lançaram mão do sistema depararam com uma cidade maia que havia se perdido no tempo. Outro caso notável foi a descoberta de uma vila dos tempos do Império Romano na Croácia, relatada em um estudo publicado em 2013. De acordo com um levantamento de 2021, pesquisadores localizaram, com a ajuda da tecnologia, 500 sítios arqueológicos que foram construídos pelos maias e pelos olmecas no México. Neste ano, uma pesquisa feita por poloneses em Machu Picchu revelou estruturas cerimoniais que estavam ocultas.
A descoberta mostra que o trabalho dos pesquisadores está só começando. Agora, é preciso estudar como nossos antepassados viviam e tirar lições para o mundo atual. A principal delas talvez seja como estabelecer complexas estruturas urbanas em harmonia com a natureza. Mais do que olhar para o passado, os estudos oferecem perspectivas para o amanhã. A relevância do processo é indiscutível. Nas palavras de Martin Luther King: “Nós não somos fazedores de história. Nós somos feitos pela história”. O novo eldorado que o diga.
Publicado em VEJA de 8 de junho de 2022, edição nº 2792