O futuro possível: a incrível experiência da Nasa sobre a vida em Marte
Em ambiente que simula superfície do planeta, astronautas estaram condições para explorá-lo em segurança daqui a duas décadas
Na primeira metade do século XIX, antes da era espacial, reputados cientistas popularizaram a ideia da existência de canais em Marte, sugerindo a presença de água e até de vida inteligente no planeta. E por que não? Os possíveis seres extraterrestres eram chamados de marcianos. Não demorou para que o engano geológico fosse percebido, já que as linhas escuras observadas eram apenas reflexos de imperfeições das lentes do telescópio. A possibilidade, porém, virou semente na imaginação de escritores como H.G. Wells, de A Guerra dos Mundos, e posteriormente de agências espaciais empenhadas em desbravar o nosso vizinho de sistema solar. Marte, depois da Lua, é natural, virou ímã de interesse da humanidade.
Em preparação para as primeiras viagens, planejadas para a década de 2030, a Nasa acaba de encerrar a fase inicial de um experimento que durou exatos 378 dias, com o intuito de simular uma missão humana naquelas bandas do cosmo. Durante esse tempo, quatro astronautas — a comandante Kelly Haston, o engenheiro Ross Brockwell, o médico Nathan Jones e a microbiologista Anca Selariu — fizeram parte do projeto Chapea (sigla em inglês para Análogo de Exploração de Saúde e Desempenho da Tripulação) e enfrentaram os desafios de uma missão tripulada no planeta vermelho — só que aqui mesmo, na Terra. Isolados em uma casa de 150 metros quadrados no Centro Espacial Johnson, em Houston, eles foram meticulosamente monitorados ao longo do teste. Entre distanciamento social, suprimentos limitados, silêncios de comunicação com a base e o desafio de semear a própria comida, o principal objetivo dessa etapa inaugural foi investigar como a alimentação restrita afetaria o desempenho dos tripulantes. “Devemos utilizar os recursos na mesma velocidade em que eles se renovam e produzir resíduos na mesma velocidade em que podem ser transformados em novos recursos”, disse Brockwell ao deixar a casa.
O desenvolvimento de tecnologias que permitam a plantação de nutrientes no terreno inóspito de Marte é uma das grandes ambições dos cientistas — aliás, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em parceria com a Agência Espacial Brasileira, dedica-se ao tema com afinco e respeito entre seus pares internacionais. “O transporte de 1 quilo de carga para Marte custaria em torno de 1 milhão de dólares”, diz Douglas Galante, astrônomo do Núcleo de Pesquisa em Astrobiologia da Universidade de São Paulo (USP). “Seria inviável, portanto, levar alimento suficiente para um ano.”
Como a tripulação não queria só comida, mas também rir, chorar e viver, um outro capítulo fundamental foi o do estudo comportamental. No passado, projetos semelhantes foram interrompidos por conflitos entre os participantes. Saber como se relacionam os seres humanos, enfim, é vital. Se um dia chegarmos lá, apenas as viagens, de ida e de volta, consumiriam cerca de nove meses cada — sem direito a fugir para espairecer. Portanto, é essencial entender como diferentes perfis respondem a tamanho estresse.
Nos próximos três anos, duas outras etapas do Chapea serão realizadas no mesmo centro para avaliar outros aspectos da missão e revelar dificuldades ainda não contempladas. Enquanto isso, outros esforços estão em andamento. Nasa e SpaceX, por exemplo, trabalham para projetar os foguetes mais poderosos já construídos, ao mesmo tempo que robôs como o Perseverance pesquisam recursos no solo de lá. Cientistas de vários países desenvolvem tecnologias de reciclagem de ar, proteção contra radiação, produção eficiente de combustíveis, purificação de água e aproveitamento de rejeitos humanos.
O sonho é rubro, pôr os pés na vermelhidão, como há mais de cinquenta anos a ambição era lunar, mas é tudo atalho para melhorar a vida na Terra. Convém não esquecer os desafios que temos por aqui — entre fome, violência e mudanças climáticas. Anca Selariu, uma das duas mulheres da trupe isolada na simulação, resumiu a beleza da ideia. “Por que ir para Marte?”, indagou, ao deixar o confinamento. “Porque é possível. Porque o espaço pode nos unir e trazer o que temos de melhor.” Partiu Marte.
Publicado em VEJA de 19 de julho de 2024, edição nº 2902