Lobo-terrível: empresa quer recuperar outros animais, mas falta de dados científicos levanta dúvidas
Embora tenha havido muito barulho, as criaturas não são cópias exatas do mamífero lá das antigas, nem poderiam ser

Daria uma cena bonita para um roteiro de série. O escritor americano George R.R. Martin, criador de Game of Thrones, celebrou com genuíno espanto — e algumas lágrimas, segundo ele — a criação de filhotes de lobo-terrível desenvolvidos pela startup de genética Colossal Biosciences. “Escrevo sobre mágica, mas vocês criaram mágica”, disse ao CEO da empresa, Ben Lamm. Na trama fictícia de Martin, os canídeos ancestrais têm papel relevante no cotidiano da família Stark, governantes do Reino do Norte. E, então, com o ruidoso anúncio, deu-se um magnífico passo científico, apesar de algumas incertezas.

Direto ao ponto: uma espécie extinta há 10 000 anos foi trazida de volta à vida. Ou, dito de outro modo, na expressão usada por Beth Shapiro, diretora científica da Colossal, o bicho foi “desextinto.” Tudo muito espantoso e fascinante, mas com um quê de licença poética de modo a fazer a aventura muito maior do que realmente é. A explicação do processo para “recriar” os animais ajuda a dar a dimensão exata do feito. Uma equipe de 130 cientistas sequenciou o genoma do lobo-terrível a partir de dois fósseis, um conjunto de dentes e um crânio. Depois, eles fizeram modificações no DNA do lobo-cinzento, raça sobrevivente da Era do Gelo, por meio de ferramentas de edição genética. Como desfecho, cadelas domésticas serviram de barrigas de aluguel.
O experimento deu origem a três adoráveis peludos. Remus e Romulus (uma homenagem a Remo e Rômulo, os irmãos alimentados por uma loba que estão ligados à fundação de Roma), hoje com seis meses, e Khaleesi (título usado pela personagem Daenerys Targaryen, de Game of Thrones), de três meses. Os três estão sendo mantidos em uma empresa privada de conservação animal, cuja localização exata é mantida em segredo para evitar visitas indesejadas de curiosos.

A Colossal, insista-se, não divulgou os estudos científicos que comprovam o processo adotado. “Sequenciar o genoma a partir dos fósseis é um enorme avanço, assim como a análise comparativa dos genomas do lobo-terrível com o do lobo-cinzento”, diz Daniel Lahr, chefe do departamento de zoologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. “Seria fundamental, contudo, ter os dados de investigação publicados em revistas de excelência.” A cautela é quase unânime. Para Jeremy Austin, diretor de um centro australiano de estudos de DNAs antigos, os bichinhos seriam “apenas geneticamente semelhantes” ao lobo-terrível — em outras palavras, uma espécie de vira-lata criado com ajuda de modernas técnicas genéticas.
De fato, embora tenha havido muito barulho, as criaturas não são cópias exatas do mamífero lá das antigas, nem poderiam ser. “Um animal é resultado de seus genes, mas também da interação com o ambiente em que vive e no nicho ecológico da fauna que ocupa”, afirma Natalia Pasternak, professora da Universidade Columbia, nos Estados Unidos, da Fundação Getulio Vargas, de São Paulo, e presidente do Instituto Questão de Ciência. Criado em cativeiro, portanto, em ambiente controladíssimo, o badalado trio pode até conduzir a imaginação para os pares pré-históricos, abre uma interessante possibilidade de futuro a beijar o passado, a tal “desextinção”, mas é cedo para abrir o champanhe.

Pode haver um bom caminho. As informações coletadas agora podem ser úteis para ajudar na sobrevivência de outras espécies em risco de extinção. É causa nobre. Não é preciso, segundo os especialistas que reagiram ao estardalhaço, “desextinguir” um animal para ajudar outro. É possível usar a tecnologia de forma direta, ampliando a diversidade genética de uma população ameaçada. Os genes de mamute, por exemplo, podem auxiliar os elefantes africanos e asiáticos.
Contudo, por ser uma companhia privada, com investidores, e avaliada em mais de 10 bilhões de dólares, a Colossal Biosciences precisa cativar o público com jogadas de marketing, desde que não alije de vez a comunidade científica. Espera-se que não caia na armadilha (ou na esperteza) da Theranos, empresa criada pela empreendedora Elizabeth Holmes em 2003 com a promessa de revolucionar o diagnóstico de doenças a partir de uma única gota de sangue coletada dos pacientes. Descobriu-se que era tudo uma fraude, e Holmes foi condenada à prisão. A mãe de Remus, Romulus e Khaleesi é mais séria, embora não deva prometer mundos e fundos. Mas atenção, porque vem mais por aí: além do lobo-terrível, a empresa trabalha na recriação de outros animais sumidos, como o pássaro dodô, presente em clássicos da literatura infantil, o lobo-da-tasmânia e o rato-lanoso, adaptado de genes de mamute. É uma imensa Arca de Noé.
Publicado em VEJA de 11 de abril de 2025, edição nº 2939