Laços de família: ciência abre nova frente para identificação de herdeiros
Geneticistas criam método que comprova parentesco entre pessoas separadas por longos períodos da história
De tempos em tempos, algum indivíduo barulhento alega ser descendente de uma personalidade famosa que viveu há muitos anos. Leonardo da Vinci, o gênio das artes e da ciência, é frequentemente aclamado como parente distante de alguém. Na Rússia, são comuns relatos de supostos herdeiros da família Romanov, dizimada pelos bolcheviques. Nas monarquias, o fenômeno é ainda mais comum: para cada rei e rainha do passado, há quase o mesmo número de impostores que se declaram seus herdeiros de sangue. Por mais que a ciência tenha se desenvolvido nos últimos anos, sempre foi impossível dizer com 100% de certeza se um Da Vinci de hoje tem, de fato, alguma conexão direta com o Leonardo do passado. Isso, porém, poderá mudar em breve. O primeiro e notável passo foi dado por geneticistas dinamarqueses e britânicos, inventores de um novo método que revelou ser capaz de confirmar o parentesco entre pessoas separadas por longos período da história.
A pesquisa, realizada pelo cientista Eske Willerslev e por especialistas da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, comprovou que um pacato cidadão americano é bisneto do lendário chefe sioux Touro Sentado (1831-1890), cujo nome verdadeiro era Tatanka-Iyotanka. Para chegar a essa conclusão, eles analisaram um amostra de 5 centímetros do cabelo de Touro Sentado e a compararam com o material genético de Ernie LaPointe, de 73 anos, que afirmava havia muito tempo ser descendente direto do líder indígena. Graças à técnica recém-criada, foi possível cravar que LaPointe estava certo: seu bisavô era mesmo o guerreiro que comandou a famosa Batalha de Little Bighorn, em 1876, levando índios sioux e cheyennes a derrotar a até então invencível cavalaria dos Estados Unidos. “As pessoas questionam o relacionamento que tenho com o meu ancestral desde que me lembro”, disse o herdeiro. “Esses mesmos indivíduos se incomodam com o lugar que ocupo e provavelmente vão duvidar das novas descobertas também.”
Ao contrário de outros métodos de exame genético, a nova técnica, que levou catorze anos para ser aperfeiçoada, concentra-se no chamado DNA autossômico, que pode ser extraído de fragmentos de cabelos, dentes e ossos. Como as pessoas herdam metade do DNA autossômico do pai e a outra metade da mãe, significa que as correspondências genéticas podem ser verificadas independentemente de o ancestral estar no lado paterno ou materno da família.
O novo método representa, de fato, uma revolução, já que se aplica inclusive quando os dados genéticos disponíveis estão limitados, como é o caso de pessoas mortas há muito tempo. Os exames anteriores permitiam que se encontrassem conexões entre pessoas com, no máximo, duas gerações de diferença. Agora, aparentemente não há limite de tempo, o que abre caminho para testes de DNA entre figuras históricas de um passado distante e seus possíveis descendentes vivos. “Com o nosso método, é possível estabelecer relações familiares com maior diferença de tempo e usando quantidades mínimas de DNA”, resume Willerslev.
A novidade é empolgante e provavelmente trará à luz mistérios do passado. Um dos mais debatidos é o da dinastia Romanov, a última família real a governar a Rússia e cujo domínio durou três séculos. Em 1918, bolcheviques assassinaram o czar Nicolau II, sua mulher e cinco filhos. Desde então, diversas pessoas alegaram ser descendentes perdidos dos Romanov, mas até agora nada se provou. Entre as famílias reais, um caso rumoroso é o do rei Ricardo III, da Inglaterra, cujo legado é reivindicado por uma legião de supostos descendentes. O dinamarquês Willerslev afirmou, na apresentação de seu estudo, que pretende avançar nas pesquisas sobre os Romanov e o rei inglês. A inovação também abre imensas perspectivas para candidatos a herdeiros de figuras históricas que tiveram seus corpos bem preservados, como o russo Vladimir Ilyich Ulianov, mais conhecido como Lênin, o chinês Mao Tsé-tung e o francês Napoleão Bonaparte. Por mais distante que o passado esteja, ele deixa suas marcas para sempre.
Publicado em VEJA de 10 de novembro de 2021, edição nº 2763