Estudo revela camada surpreendente de uma obra-prima de Van Gogh
Uma de suas mais celebradas telas reproduz padrões atmosféricos cuja dinâmica só seria entendida com recursos modernos
É quase mágico — e magnético como um ímã industrial. Os 3 milhões de pessoas que todos os anos visitam o Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMA, postam-se diante do quadro A Noite Estrelada, de Vincent van Gogh, como quem se debruça sobre os mistérios da existência. Os smartphones despontam acima das cabeças; não é fácil vê-lo com calma. O vaivém da sala é como um balé ininterrupto a cercar a tela a óleo de 74 centímetros de altura por 92 centímetros de largura, pintada em 1889 dentro de um quarto minúsculo, de janela exígua, no asilo psiquiátrico de Saint-Rémy-de-Provence, comuna no sul da França. Poucas obras do pós-impressionismo são tão aplaudidas e copiadas como o firmamento ao nascer do dia imaginado pelo gênio holandês, pedacinho de mundo que parece iluminar o infinito.
A relevância do trabalho e seu eterno poder de atração transformaram A Noite Estrelada em sinônimo da capacidade humana de imaginar o indizível, a força da criatividade. Em uma única palavra: arte. Agora, um fascinante estudo desenvolvido por cientistas da Universidade de Xiamen, na China, em parceria com um grupo de franceses, revelou uma nova camada, atalho para ampliar ainda mais a riqueza das pinceladas. Verificou-se, por meio de ferramentas de inteligência artificial (IA) associadas a conhecimento de astronomia e meteorologia, que Van Gogh reproduziu à perfeição os ritmos de turbulências da atmosfera. É como se, há 135 anos, ele tivesse em mãos ferramentas modernas. “Minha atenção foi despertada em 2006, com a publicação de um estudo mexicano pioneiro, o primeiro a levantar a hipótese de padrões matemáticos naquela imagem”, disse a VEJA Yongxiang Huang, um dos autores da investigação. Mais precisamente, o atual levantamento coteja a ilustração clássica com as teorias do soviético Andrei Kolmogorov, que em 1940 descreveu a relação entre os fluidos da natureza e o modo pelo qual eles se dissipam, liberando energia.
Um modo de enxergar a acuidade de Van Gogh — capaz de desenhar apenas a partir de observações o que algoritmos hoje conseguem medir com exatidão — é comparar A Noite com fotografias reais divulgadas pela Nasa. Tomem-se, como exemplo, os círculos alaranjados e bailarinos de Júpiter registrados pela sonda Juno em 2018 (acima). Ou então os detalhes de uma estrela, a Monocerotis, captada pelas lentes precisas, de altíssima definição, do telescópio Hubble (abaixo). É a realidade com as tintas de Van Gogh, sem tirar nem pôr, em bonito movimento reverso, o futuro de mãos dadas com o passado da humanidade. “Não se trata de imaginar que os grandes pintores tivessem acesso a conceitos físicos”, diz Marco Aurélio de Menezes Franco, do departamento de Ciências Atmosféricas do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP. E o que é, então? Talvez apenas a beleza da intuição e o cuidado de parar para ver (ou sentir) os movimentos do universo.
Ressalve-se que Van Gogh não está sozinho nessa aventura. O norueguês Edvard Munch instalou o personagem de O Grito, de 1893, desesperado, na moldura ondulante de um céu nebuloso e depressivo. “É extraordinário o casamento dos pincéis com ferramentas capazes de, hoje, medir a dinâmica do clima, tanto no ar como debaixo d’água”, afirma Carlos Ayres, presidente do Clube de Astronomia do Rio de Janeiro. Seria o caso de atrelar a bonita descoberta, espetacular dada a simplicidade, a um aforismo de Aristóteles que lá atrás, antes de Cristo, intuíra que “a arte imita a vida”. Soa um tanto batido, lugar-comum, mas aqui cabe como luva. Um outro caminho é imaginar a antevisão de A Noite Estrelada como ideia colada a um inteligente raciocínio de Vladimir Nabokov, o autor de Lolita: “Não há ciência sem imaginação, nem arte sem fatos”.
Publicado em VEJA de 27 de setembro de 2024, edição nº 2912