Em alta conta: novo livro mostra como a matemática remodelou o mundo
Função do cálculo foi extrapolada para que se criasse modelos que ajudam a combater o aquecimento global e as pandemias
A história aconteceu em meados dos anos 1960. Insatisfeito com seu livro em torno dos dilemas morais de marinheiros na II Guerra, que resultaria depois no filme A Nave da Revolta (1954), o escritor americano Herman Wouk (1915-2019) decidiu pesquisar mais sobre conflitos bélicos. Buscava, enfim, a temperatura exata para novos trabalhos sobre o tema. Foi o que o levou até Pasadena, no Instituto de Tecnologia da Califórnia, para entrevistar o físico Richard Feynman (1918-1988), um dos arquitetos da bomba atômica no Projeto Manhattan e pioneiro da mecânica quântica. Ao fim da conversa, como quem não queria nada, Feynman perguntou a Wouk se ele sabia cálculo matemático. O escritor admitiu que não. “Então é melhor aprender”, disse o físico, um ateu declarado. “É a língua falada por Deus.”
Wouk acabaria publicando não um, mas dois ambiciosos volumes com cerca de 1 000 páginas cada, Ventos de Guerra (1971) e Lembranças de Guerra (1978), parte deles embebida das sessões de conversa com Feynman. Com a vida consumida pelo trabalho de escrever os livros, o conselho de Feynman foi postergado. “O cálculo continua sendo uma grossa parede de vidro entre mim e a maioria das verdades no universo de Feynman, onde ele ouve Deus falar”, escreveria mais tarde o autor. Wouk viveu 103 anos. Não o suficiente para aprender a matéria, mas o bastante para ver e experimentar os avanços que essa área da matemática ajudou a impulsionar, para tornar o mundo um lugar mais confortável, um pouco mais seguro e um tanto mais saudável. Essa aventura da civilização é tema do recém-lançado e fabuloso livro O Poder do Infinito (Sextante), do matemático e professor da Universidade Cornell Steven Strogatz. Ele mostra como os seres humanos dominaram essa língua divina e a têm utilizado para remodelar o mundo. “É a história de como a matemática nos ajudou”, disse ele em entrevista a VEJA.
De Pitágoras de Samos, o filósofo grego considerado o pai da matemática, a Isaac Newton, o físico inglês que contribuiu para o desenvolvimento do cálculo infinitesimal, e até a atualidade, com celebridades científicas como Albert Einstein e Stephen Hawking, a matemática — e o cálculo, em particular — faz parte da nossa vida, direta e indiretamente, exatamente como mostra a obra de Strogatz. Sem a matemática, seria impossível usar o celular, que é quase uma extensão dos corpos de bilhões de pessoas no mundo. Tampouco seria possível recorrer aos computadores, dos quais grande parcela da força de trabalho depende para realizar suas tarefas profissionais. Assistir à TV ou ver filmes e séries nas plataformas de streaming? Nem pensar. Mas não é só isso. Seria inviável combater o aquecimento global ou aperfeiçoar o tratamento da aids, e muito menos identificar onde o seu time do coração precisa melhorar no campo. A vida, enfim, é feita de matemática.
Não se trata do cálculo puro, área que não pressupõe atenção especial, porque as calculadoras nos smartphones e nos computadores cuidam disso. Há uma parte criativa da matemática, contudo, aplicada à natureza, à medicina e a outros capítulos do mundo real. Não há como negligenciá-la. São os chamamos modelos matemáticos, caricaturas simplificadas da realidade que traduzem um problema real em equações. Por meio deles podemos fazer previsões sobre o que acontecerá. Um modelo de equação diferencial desenvolvido por um imunologista e um pesquisador contribuiu para a criação do coquetel para pacientes infectados pelo vírus HIV. Como isso se tornou possível? “O cálculo foi decisivo para ajudar a entender a natureza da doença e orientar os médicos sobre como tratá-la”, pontua Strogatz.
As aplicações na vida contemporânea são variadas e surpreendentes. Podem estar no sistema que permite uma transmissão mais definida e estável da partida de futebol na TV ou nos modelos que asseguram a permanência em pé de um prédio ou de qualquer construção, ou nas fórmulas que mostram a evolução da pandemia e permitem estabelecer estratégias para combater a Covid-19 e evitar mortes. No Brasil, em razão de um sistema de ensino unificado e com muitas matérias, o cálculo matemático entra no currículo dos alunos tarde demais na vida escolar. “Com isso, o cálculo acabou sendo expurgado, o que é um disparate”, diz Marcelo Viana, diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e Aplicada do Rio. “Mas é algo que deve mudar em breve. Com a reforma do ensino médio, que trará opções de especialização, isso permitirá dar mais ênfase a umas áreas do que a outras.” Não se trata, como disse Feynman a Wouk, de falar com Deus. Mas talvez seja um dos modos, se não o melhor, de usar uma linguagem universal para melhorar o cotidiano.
Publicado em VEJA de 30 de março de 2022, edição nº 2782