Como a ciência está criando uma nova arca de Noé
Os criobancos armazenam amostras de espécies ameaçadas e extintas — para, quem sabe, reativá-las no futuro
É fato que a vida na Terra está em perigo, e as comemorações do Dia Mundial do Meio Ambiente, marcado para o próximo 5 de junho, certamente colocarão luz sobre o assunto. De acordo com a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), mais de 40 000 espécies estão ameaçadas de extinção, o que representa 28% dos animais e plantas catalogados pela organização. Nos últimos cinquenta anos, estima-se que as populações de mamíferos, aves, anfíbios, répteis e peixes caíram, em média, 68%. Para remediar o problema, a ciência busca uma saída ousada: a criação de criobancos ou biobancos, instituições que coletam e congelam amostras de tecidos e células dos seres que estão na iminência de desaparecer do mapa. No futuro, espera-se, a tecnologia permitirá que o DNA deles possa ser replicado com mais facilidade.
O Nature’s Safe, criado pelo britânico Tullis Matson, especialista em inseminação artificial, está entre os mais ativos biobancos do Reino Unido, com amostras de mais de 100 espécies armazenadas. Depois da colheita das células, o material é colocado em tubos contendo um anticongelante rico em nutrientes e propício à preservação celular. Esses recipientes são então guardados a 196 graus negativos, temperatura na qual todos os processos químicos cessam. “Isso não vai parar a extinção, mas certamente vai ajudar”, diz Matson.
Para “acordar” as amostras, os técnicos as aquecem em um banho de nutrientes, quando passam a se dividir e se multiplicar. Depois, parte-se para um processo parecido com o de uma clonagem. Uma empresa de biociência chamada Colossal tem planos de instalar um embrião composto de células de elefante e do extinto mamute-lanoso, cujo DNA foi coletado de fósseis de chifres, ossos e outras partes preservados no gelo, no útero de uma fêmea contemporânea. Dessa forma, seria criado um híbrido de elefante e mamute. Algo semelhante pode ocorrer no futuro com pandas, tigres e gorilas, se esses animais vierem a desaparecer.
Há otimismo entre os especialistas. “Os materiais que coletamos e armazenamos são uma fonte valiosa de recursos para a conservação da vida”, afirma Marlys Houck, curadora do criobanco Frozen Zoo, em San Diego, nos Estados Unidos, que administra amostras de cerca de 1 000 espécies, incluindo a de uma ave extinta, a trepadeira-de-cara-preta. “Combinando o que nós temos com tecnologias avançadas, podemos ajudar a trazer espécies de volta da beira da extinção.” A possibilidade, no entanto, não pode ser encarada como senha para continuar explorando o meio ambiente. Os criobancos funcionam como backups de espécies, e não como substitutos da preservação do planeta. Além disso, há outras preocupações envolvidas, como a manutenção de hábitats específicos, que podem desaparecer no futuro e impedir o desenvolvimento de espécies ressuscitadas.
As discussões levam a um questionamento inevitável: a mesma tecnologia pode ser aplicada a humanos? Por enquanto, a resposta é categórica: não. Apesar de celebridades como Paris Hilton e Peter Thiel terem se interessado pelo assunto e até investido em pesquisas, trata-se mais de ficção científica do que uma possibilidade real. Ao contrário de alguns animais, o ser humano não possui tecidos adaptáveis ao frio extremo. Portanto, seriam destruídos pelas temperaturas exigidas pela criogenia. Há ainda preocupações com a genética, que pode ser modificada nessas condições extremas. Alguns especialistas, contudo, acreditam que isso pode acontecer em um futuro não muito distante.
Seja como for, qualquer solução que vise a preservar a vida deve ser mais do que bem-vinda. A maior parte dos especialistas e conservacionistas envolvidos nas pesquisas para esse fim espera que nunca seja necessário lançar mão dos bancos de amostras, a não ser para experimentos que possam manter o meio ambiente preservado e cada vez mais diverso. Nada disso, no entanto, substitui a consciência de que temos de criar soluções sustentáveis para manter o planeta habitável para todas as espécies por mais tempo possível.
Publicado em VEJA de 8 de junho de 2022, edição nº 2792