Cientistas descobrem a teia de ‘super-rodovias’ maia – a primeira do mundo
Encontradas em meio à densa floresta, elas revelam que o apogeu da avançada civilização maia durou séculos a mais do que se imaginava
Uma das civilizações mais avançadas do período pré-colombiano, os maias deixaram como herança à humanidade exemplares deslumbrantes de sua perícia como arquitetos. Vale uma visita a Chichén Itzá, no México, sítio arqueológico debruçado sobre águas caribenhas de um azul-turquesa único, ou às ruínas de Palenque, também em território mexicano, onde uma coleção de pirâmides e esculturas se revela em meio à floresta, para ter um bom aperitivo de sua capacidade de pôr de pé cidades que primavam pela opulência, da América Central ao sul dos Estados Unidos. Como os pesquisadores não param de cavucar naquelas bandas, em uma incansável rotina de trazer à luz resquícios da história, acabaram por chegar a uma descoberta que mobilizou a comunidade científica: por meio de recursos de alta tecnologia, um time internacional da Foundation for Anthropological Research (Fares) mapeou uma teia de estradas nunca antes vista — a primeira rede de “super-rodovias” de que se tem notícia no mundo, como classificaram o achado, recém-registrado na Ancient Mesoamerica, respeitada publicação da Universidade de Cambridge.
As impressionantes dimensões para a época de tal malha viária — 300 quilômetros de extensão e 40 metros de largura, números mais parrudos do que os das vias do Império Romano — são apenas um aspecto do levantamento, que elucida muito mais sobre essa sociedade fincada em forte hierarquia e afeita ao conhecimento. As estradas que cortavam os domínios maias são a prova concreta de que seu apogeu se esticou para além do período desde sempre estabelecido, entre 200 d.C. e 600 d.C.: feita a análise dos objetos ali encontrados, concluiu-se que elas podem datar, na realidade, de 600 a.C, estendendo por até mais oito séculos o ápice de uma civilização que demonstrava saber singular não só para a engenharia, mas também para a matemática e a astronomia. “A pesquisa descortina uma nova compreensão sobre os maias, que, agora sabemos, exibiam esplendor bem antes do que imaginávamos”, diz a arqueóloga Traci Ardren, da Universidade de Miami.
Com o uso de um ultrapotente sensor remoto acoplado a um avião, trabalho que promoveu uma varredura aérea por centenas de milhares de quilômetros, foram surgindo entre as copas das árvores — um quase impermeável telhado verde — construções que jamais haviam sido avistadas. Os raios lasers lançados pelo equipamento produziram imagens em 3D de indícios de antigos povoados maias, de templos e, por fim, da intrincada malha rodoviária. “A tecnologia permitiu cobrir um perímetro imenso em curto espaço de tempo — no lugar de anos de esforço de arqueólogos, foram consumidos dias”, diz Luiz Aragão, especialista do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Os feixes de luz mostraram com nitidez que o emaranhado de “autoestradas” era feito à base de pedra e coberto de cal, daí sua brancura que, acredita-se, atraía gente que enxergava na sua travessia um ato de purificação.
Tudo indica que essas vias abrigavam peregrinos, multidões dispostas a cruzá-las rumo a capitais religiosas onde cultivavam-se em elevado grau os rituais maias. Politeístas, eles entendiam o sacrifício humano como forma de agradar aos deuses e manter seu reino longe de pragas e guerras. As rotas descortinadas também eram percorridas para o comércio, atividade essencial. “As pesquisas confirmam que artefatos de Belize foram parar nos Estados Unidos, por exemplo”, relata o arqueólogo americano Arlen Frank Chase.
A visão inédita sobre a generosa mancha do mapa então sob o poderio maia, que compreende ao todo oito países (veja o mapa), esclarece ainda um fato que intrigava os arqueólogos: como um reino de 200 000 habitantes — esse é o dado mais usado — teria conseguido se espraiar por tamanha faixa de terra? A resposta veio das novas imagens, que revelaram pelo menos 1 000 assentamentos antes ignorados. Isso multiplica a população maia para algo em torno de 1 milhão de pessoas. “É uma mudança substancial, que ajuda a explicar sua força”, avalia a arqueóloga americana Anabel Ford. Organizados em cidades-Estado, cada qual com seu próprio rei, os maias começaram a travar batalhas entre si, e suas terras cultiváveis não atendiam mais à demanda por comida. Por essas e outras, entraram em declínio a partir dos anos 900 d.C., mas as extraordinárias provas de sua engenhosidade continuam a encantar os olhos.
Publicado em VEJA de 8 de fevereiro de 2023, edição nº 2827