Brumadinho: A mancha do descaso
Um ano depois da catástrofe que deixou 259 mortes confirmadas e devastou o meio ambiente, muito ainda resta a reparar
No dia 25 de janeiro de 2019, o lema “Mariana nunca mais”, que aspirava a soar como lição, foi manchado por uma inaceitável repetição da história. Naquela data, a barragem B1 da mina Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG), da empresa Vale, se rompeu, liberando mais de 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos da extração de ferro. A tragédia fez recordar o desastre de 5 de novembro de 2015, no distrito de Bento Rodrigues, na também mineira Mariana, no qual o rompimento de outra barragem, da Samarco, controlada pela Vale e pela australiana BHP, vitimara dezenove pessoas e poluíra o Rio Doce. Em Brumadinho, foram 259 mortes (onze corpos continuam desaparecidos).
Na terça-feira 21, o ex-presidente da Vale Fabio Schvartsman e mais quinze executivos foram indiciados pelo crime de homicídio doloso pelo acidente na mina Córrego do Feijão. Dez deles são funcionários da empresa, e cinco da consultoria alemã TÜV SÜD, responsável pela certificação de segurança da estrutura danificada. O mais irônico é que, ao assumir o comando da Vale, em 2017, Schvartsman garantira: “Devemos adotar juntos o lema ‘Mariana nunca mais’. Que tenha sido a última vez que estejamos envolvidos direta ou indiretamente num desastre ecológico e social dessa dimensão. Quero ter esse compromisso”. A promessa durou pouco, muito pouco.
Passado o primeiro ano da tragédia de Brumadinho, a mineradora divulgou amplamente as ações adotadas para compensar os danos: 359 milhões de reais investidos em obras emergenciais; 500 milhões de litros de água distribuídos para consumo humano, animal e irrigação agrícola; e 3 bilhões de litros de água tratada devolvidos ao Rio Paraopeba, entre outras medidas. No entanto, para a população, as providências não refletem as dificuldades encaradas diariamente, em consequência da catástrofe.
“Direitos garantidos aos atingidos — como a criação de grupos com o objetivo de prestar assessoria técnica independente da Vale — não estão sendo cumpridos”, afirma a defensora pública Carolina Morishita, que atua em prol dos interesses das famílias das vítimas. Em fevereiro de 2019, a mineradora assinou um acordo que previa a formação das equipes citadas pela defensoria pública. Contudo, a empresa até hoje resiste a cumprir o trato, sob a alegação de que sairia caro — 70 milhões de reais para cada um dos cinco grupos determinados, ou seja, uma despesa total de 350 milhões de reais.
O desastre, porém, não arruinou a Vale. De lá para cá, o valor de mercado da mineradora subiu. O aumento, puxado por demandas da China, fez a companhia ultrapassar a avaliação de 300 bilhões de reais, 5 bilhões acima de sua cotação antes do rompimento da barragem B1 de Brumadinho.
É verdade que, além do que foi mencionado, a Vale tomou outras providências. Implementou, por exemplo, atendimento psicológico e suporte financeiro a familiares dos mortos (leia abaixo). Não basta. “Produtores rurais, não atingidos diretamente pelo lamaçal dos rejeitos, ainda buscam reparação, pois também tiveram a saúde emocional abalada, uma vez que não podem mais manter a forma tradicional pela qual viviam antes”, diz Carolina Morishita.
Outro ponto que reclama redobrada atenção é a recuperação do meio ambiente. O Rio Paraopeba, poluído pelos rejeitos, abastece 30% da população de Belo Horizonte. Alguns de seus trechos foram soterrados, e há locais onde se registrou aumento de 25% da mortalidade de algumas espécies de peixe. Na quinta-feira 23, a SOS Mata Atlântica divulgou um novo relatório sobre a análise de 356 quilômetros das águas fluviais atingidas. De acordo com a ONG, os indicadores de qualidade aferidos revelaram que elas estão impróprias para uso em toda a extensão percorrida. Em onze locais, os contaminantes impedem a presença de qualquer vida aquática.
Logo após a calamidade em Brumadinho, a Vale anunciou que desativaria nove barragens semelhantes à que se rompeu, ao longo de três anos, a fim de evitar outras tragédias — fez isso com uma delas em novembro último. É pouco. O pior é que, de acordo com a consultoria ambiental dinamarquesa Ramboll, ainda existem 122 barragens em risco no Brasil. Desse total, segundo a Ramboll, 84 são da Vale — onze com a mesma estrutura da B1 de Brumadinho. Isso significa que o país não está livre de ver a história se repetir — novamente como tragédia.
Publicado em VEJA de 29 de janeiro de 2020, edição nº 2671