Boteco milenar: a descoberta da taverna mais antiga do mundo
Localizada no Iraque, ela mostra que os bares desempenham papel vital nas relações sociais há pelo menos 5 000 anos
É comum associar a arqueologia a grandes descobertas arquitetônicas, como templos e fortalezas que representam a grandiosidade de povos antigos. No entanto, é possível obter um retrato mais diverso de nossos antepassados a partir da análise da vida cotidiana. Recentemente, um grupo de pesquisadores das universidades da Pensilvânia e de Pisa descobriu uma taverna no atual Iraque com quase 5 000 anos de idade. Além de uma área externa e uma cozinha, os arqueólogos encontraram recipientes de bebidas, cumbucas com restos de comida, um fogão e um precursor da geladeira, usado para manter alimentos frescos. Localizado no sítio arqueológico de Lagash, uma das maiores e mais antigas cidades da região sul da Mesopotâmia, era frequentado por uma classe média que saía para tomar uma bebida e comer algo no fim do dia — uma prática que se mantém, com pequenas variações e grandes quantidades, até hoje. Os cientistas chamaram a descoberta de “o bar mais antigo do mundo”.
Os bares, tavernas e pubs representam, há milhares de anos, um espaço de encontro e de socialização. “O bar é o lugar mais democrático que existe”, afirma o bartender Alê D’Agostino, fundador da marca de coquetéis engarrafados APTK Spirits. “Eles foram as primeiras redes sociais para onde as pessoas iam quando queriam saber o que estava acontecendo.” Na Grécia antiga, enquanto a aristocracia realizava banquetes palacianos, era nos bares que a população ia à forra, cantando, dançando e, claro, bebendo muito. No Império Romano, um tipo de bar de vinho conhecido como popina era o ponto de encontro dos plebeus. Lá, tomavam umas e outras e aproveitavam o ambiente descontraído para participar de jogos de azar ou contratar prostitutas.
As tavernas continuaram tendo papel social com o passar dos anos. Na Idade Média, eram espaços de confraternização que ofereciam um respiro dos pesados trabalhos. Aos poucos, viraram também centros de negócios. E foram ganhando particularidades em diferentes países. Na França do século XVII, eram as melhores opções para jantar fora, junto com os cabarés. Na Inglaterra, os pubs (abreviação de public houses, ou casas públicas) herdaram o legado das antigas tavernas, mas se transformaram no modelo de bar tradicional inglês que é replicado em outros lugares do mundo. Até hoje, em países da Europa, bares centenários continuam abertos ao público e viraram locais aonde as pessoas vão para acompanhar grandes eventos da sociedade, de finais de campeonatos de futebol a eleições. No Japão, os izakayas, como são chamadas as lojas de bebidas alcoólicas, ficaram mais sofisticadas e se tornaram referências gastronômicas. No Brasil, poucas instituições são tão populares como o boteco, aberto desde o café da manhã até a madrugada, onde é possível sentar para comer um salgado e beber uma cerveja. O país também tem estabelecimentos centenários, como o tradicional Ponto Chic, aberto em plena Semana de Arte Moderna de 1922.
Embora as pessoas continuem frequentando esse tipo de estabelecimento com os mesmos objetivos há milhares de anos, os bares passaram por notável evolução. No século XIX, o trabalho de pioneiros como o bartender Jerry Thomas, considerado o pai da mixologia, foi fundamental para a criação da cultura de coquetéis. Nas últimas décadas, houve também grande transformação na maneira como o serviço é oferecido, com menus ambiciosos que tornaram as barreiras entre bares e restaurantes menos claras. Não foi só isso. “Até hoje, o bar é um ponto de encontro”, diz o bartender Alê Bussab, sócio do Trinca Bar, em São Paulo. “No século XXI, com o boom de informação, há um novo tipo de cliente que busca a experiência e a troca de informações sobre a coquetelaria.” São pessoas que apreciam os diferentes destilados e métodos de preparação. “Em bares de alta coquetelaria, os clientes conhecem muito bem o tema”, afirma Bussab. Afinal, por que os bares seduzem tanto? “É um lugar onde a loucura é vendida em garrafas”, escreveu o inglês Jonathan Swift, autor de Viagens de Gulliver. E a arqueologia agora revela que tem sido assim há pelo menos 5 000 anos.
Publicado em VEJA de 7 de junho de 2023, edição nº 2844