Análise de ossos antigos da América do Sul apontam as origens da sífilis
Os resultados podem encerrar os debates que questionam se a doença nasceu nas Américas ou foi trazida pelos europeus

Na Itália, em 1493, o rei francês Carlos VIII liderava uma batalha de conquista. Naquele contexto, porém, um invasor se mostrou ainda mais poderoso: uma misteriosa e desfigurante doença que teria surgido nos acampamentos militares e rapidamente se espalhou pela Europa e Ásia. Este foi o primeiro registro histórico da sífilis, uma infecção que até hoje levanta questões sobre sua origem.
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A coincidência temporal com o retorno da primeira expedição de Colombo às Américas, aliada a crônicas indiretas, deu origem à hipótese de que a doença teria surgido no continente americano e sido levada para a Europa nos navios do navegador europeu. Por outro lado, uma teoria alternativa sugere que a infecção já existia na Europa antes das viagens ao Novo Mundo, mas permanecia latente.
Agora, avanços na análise de DNA antigo estão trazendo novas pistas sobre esse enigma. Pesquisadores do Instituto Max Planck de Antropologia Evolucionária, na Alemanha, analisaram ossos de esqueletos encontrados nas Américas que apresentavam sinais da infecção. Os resultados, publicados na revista Nature, revelaram que esses restos mortais, datados de épocas anteriores à chegada de Colombo ao Novo Mundo, continham genomas de bactérias da família Treponema pallidum, que inclui a sífilis, bouba e bejel.
A equipe conseguiu reconstruir cinco genomas dessas bactérias a partir de diferentes partes de ossos encontrados em diferentes regiões das Américas, como Argentina, Chile, México e Peru. A datação por radiocarbono permitiu rastrear a origem dessas cepas até um ancestral comum que viveu há cerca de 9.000 anos. “Esta é uma época em que os humanos já estavam bem estabelecidos nas Américas, e eles não estavam interagindo com populações em outras partes do mundo. Eles estavam basicamente isolados geográfica e biologicamente nas Américas”, explicou Kirsten Bos, líder do grupo de paleopatologia molecular no Instituto Max Planck, ao jornal britânico The Guardian.
Essa descoberta reforça a teoria de que a sífilis e suas doenças relacionadas tiveram suas raízes nas Américas. Posteriormente, elas teriam se espalhado globalmente devido ao tráfico de pessoas e à expansão europeia pelas Américas e África, a partir do final do século XV.
Não é a primeira vez que estudos baseados em análises de DNA antigo corroboram essa hipótese. Em janeiro deste ano, um estudo também publicado na Nature, conduzido por pesquisadores das universidades de Zurique, Basiléia, Viena, ETH Zurique, Autônoma de Barcelona e da Universidade de São Paulo, apresentou a análise de um genoma da bactéria Treponema pallidum obtido de amostras de 2.000 anos de idade de um túmulo indígena (sambaqui) do sítio arqueológico Jabuticabeira II, localizado no município de Laguna, no litoral catarinense. Os resultados sugerem que os treponemas, de fato, estavam presentes nas Américas antes da chegada de Colombo, embora não digam que eles necessariamente causaram a sífilis ou outras doenças relacionadas.
A sífilis pertence a uma pequena família de doenças causadas pela bactéria Treponema pallidum. Enquanto a sífilis é encontrada globalmente, bouba e bejel são consideradas doenças tropicais, comuns em regiões equatoriais. O estudo do Instituto Max Planck mostrou que as linhagens de bactérias encontradas nos ossos analisados são irmãs das cepas modernas que ainda hoje afetam os seres humanos.
Apesar dessas evidências, os pesquisadores são cautelosos e afirmam que o debate sobre a origem da doença ainda não pode ser encerrado. “Há muitas perguntas importantes que precisamos responder”, concluiu Bos. “Estamos olhando para fontes muito limitadas de dados e tentando analisá-las de uma forma holística, abrangente e com a mente muito aberta.”