A polêmica do fóssil coletado no Nordeste que foi parar em museu alemão
A posse por uma entidade estrangeira de ossos de um dinossauro encontrado no Brasil gera atrito acadêmico internacional e suscita questões éticas e legais
Ubirajara significa, na língua indígena tupi, “mestre da lança” e foi usado para compor o nome científico de uma extraordinária descoberta feita a partir de um fóssil encontrado na Bacia do Araripe, no Nordeste do Brasil. Ubirajara jubatus é um dinossauro que viveu na região cerca de 120 milhões de anos atrás. Na imagem simulada ao lado, o animal aparece em todo o seu esplendor: espetos que parecem lanças saem da base do seu pescoço (o que justifica a escolha do nome) e seu corpo é coberto de penas. É o primeiro da espécie encontrado no Hemisfério Sul. Tudo estaria perfeito — a pesquisa e a conquista científica — se esse animal, extinto há milhares de milênios, não estivesse hoje no centro de uma polêmica sem precedentes na história da paleontologia brasileira.
A saga começou em 1995, quando um conjunto de fósseis retirados de Araripe foi despachado para a Europa. Essa imensa bacia nordestina, que se estende por Pernambuco, Piauí e boa parte do Ceará, é considerada a mais importante do mundo no estudo do período cretáceo inferior (entre 145 milhões e 100 milhões de anos atrás). Foi no cretáceo que se desenvolveram os répteis que aparecem no filme Parque dos Dinossauros — o nome original, em inglês, Jurassic Park, foi escolhido só porque tem melhor sonoridade —, e o Nordeste brasileiro, naquele tempo, era berço dos pterossauros, fascinantes animais alados. Vinte e cinco anos depois de sair do Brasil, um dos fósseis deixados no Museu de História Natural de Karlsruhe, na Alemanha, apareceu em um estudo publicado no periódico científico Cretaceous Research, no qual pesquisadores europeus, sem universidades brasileiras envolvidas, anunciaram a descoberta do Ubirajara. A celeuma então se ergueu com a fúria de um tiranossauro.
Nas redes sociais, a hashtag #UbirajaraBelongsToBR (Ubirajara pertence ao Brasil) vem sendo compartilhada incessantemente desde a publicação do estudo em dezembro passado. É uma campanha para que o fóssil seja devolvido ao país de origem, e é provável que a demanda esteja correta. Flaviana Lima, professora da Universidade Federal de Pernambuco, explica a VEJA que duas caixas repletas de fósseis, sem identificação individual, partiram do Brasil de forma irregular em 1995. Ela não pode afirmar que houve crime, mas admite que a exportação pode ter sido facilitada. “Devido a sua importância, Araripe é regularmente visitada por paleontólogos estrangeiros, e eles provavelmente sabiam que estavam levando algo especial naquelas caixas”, diz Flaviana. Ela acredita que pesquisadores brasileiros fariam um estudo tão bom quanto o publicado se tivessem acesso ao material.
Fósseis, ao contrário do que se pode pensar, não são ossos em estado natural. No processo de fossilização, a carcaça do animal é coberta por sedimentos antes que seja consumida por microrganismos. Na prática, ela se torna parte da rocha. Se hoje temos provas da existência de animais pré-históricos, é porque uma pequena amostra dos bilhões que existiram ficou soterrada. O professor britânico David Martill, líder da pesquisa sobre o Ubirajara, afirma que não estava com a equipe que coletou as amostras de Araripe e que só foi convidado a participar do estudo em 2012. Em entrevista a VEJA, ele diz que apoia o retorno de amostras aos países de origem, mas admite ter restrições quanto ao Brasil: “Em cinco anos, vocês tiveram três grandes incêndios em museus do Rio, São Paulo e Belo Horizonte. E o financiamento de suas instituições nunca esteve tão baixo”.
O argumento de Martill é contestado por Renato Ghilardi, presidente da Sociedade Brasileira de Paleontologia (SBP), que já recebeu autorização da Agência Nacional de Mineração — gestora de recursos dessa natureza — para negociar com o museu de Karlsruhe a repatriação do Ubirajara. Ghilardi diz que o britânico tergiversa porque, na verdade, preferiria que os fósseis nunca mais voltassem para o Brasil. “Temos diversos museus seguros e equipados que podem perfeitamente receber esse e outros fósseis”, ele afirma. Mas admite que mais financiamento, tanto do governo quanto de empresas, seria bem-vindo.
Até que o impasse fique resolvido, a SBP negociou com a Cretaceous Research a retirada do artigo. Além disso, está trabalhando junto ao Congresso para um novo arcabouço legal que regularize a profissão de paleontólogo e coíba o contrabando. Porém, para conseguir repatriar o fóssil, ainda terá de superar muita burocracia e elevados custos de transporte. Espera-se que a instituição seja bem-sucedida. Afinal, o Ubirajara merece estar em sua casa.
Publicado em VEJA de 27 de janeiro de 2021, edição nº 2722