A nova frente de pesquisas aberta pela confirmação de água na Lua
A descoberta de moléculas no solo lunar é mais um extraordinário feito científico que impulsionará a nova era da exploração espacial
Seria 2020 um ano perdido para a humanidade? Nem tanto. Enquanto a Terra parece ter parado de girar por causa da pandemia do novo coronavírus, a exploração espacial vai de vento em popa. Ou, usando uma expressão mais adequada, rápida como um foguete. Entre os principais feitos, houve o primeiro voo tripulado comercial da SpaceX, que chegou são e salvo à Estação Espacial Internacional em maio. A mesma SpaceX está lançando uma rede de satélites provedora de internet, e uma sonda da Nasa, a milhões de quilômetros da Terra, colheu amostras inéditas do asteroide Bennu. Já seriam conquistas suficientes para uma década de trabalho, mas, na segunda-feira 26, descobriu-se que, definitivamente, existe água na Lua — uma revelação que pode ampliar o conhecimento do sistema solar, além de mudar o rumo das próximas missões da Nasa.
A Lua é essencialmente uma esfera rochosa de 3 474 quilômetros de diâmetro que gira em torno da Terra a 384 000 quilômetros de distância, afastando-se e aproximando-se conforme a época do ano. Como o satélite natural leva 27 dias para girar no próprio eixo e quase o mesmo tempo para dar a volta na Terra, vê-se sempre o mesmo lado dele, de qualquer lugar do planeta. E foi justamente perto dos limites dessa face visível (erroneamente chamada de “iluminada”, já que todo o satélite é banhado de sol) que os astrônomos de um observatório, o Sofia, detectaram moléculas de água.
Sofia (acrônimo em inglês para Observatório Estratosférico de Astronomia Infravermelha) não é um observatório fixo no solo nem um dispositivo orbital. Ele está instalado em uma aeronave — mais precisamente, um Boeing 747 SP — que chega a mais de 13 000 metros de altura, bem acima dos gases atmosféricos que interferem no telescópio. Uma vez atingida a altitude desejada, uma porta se abre na fuselagem, permitindo que os espelhos e as lentes do aparelho perscrutem as estrelas. Telescópios infravermelhos funcionam como os convencionais, com a diferença de que podem captar informações do espectro eletromagnético que não são visíveis a olho nu, como temperatura e composição de objetos astronômicos.
Apontado para Clavius, a segunda maior cratera visível na Lua (batizada em homenagem ao astrônomo e matemático alemão do século XVI), o observatório Sofia detectou moléculas de H2O em meio aos sedimentos do solo lunar. Espalhadas dentro e ao redor da cratera, cada concentração, segundo os cientistas, não conteria mais do que 350 mililitros, volume equivalente ao de uma lata de refrigerante. Para efeitos de comparação, o Deserto do Saara tem 100 vezes mais água do que a cratera Clavius. Na verdade, “as moléculas detectadas estão tão espalhadas que a água não estaria em estado líquido nem sólido”, disse a pesquisadora Casey Honniball.
Tantos detalhes técnicos revelados pela Nasa parecem cair, figurativamente falando, como baldes de água fria sobre a cabeça dos mais céticos, mas seria um terrível engano pensar assim. As moléculas captadas no infravermelho são um forte indício de maiores volumes no subsolo. É verdade que sondas enviadas aos polos do satélite já haviam detectado milhões de toneladas de gelo nas fendas mais profundas, mas a comunidade científica está inclinada a acreditar que esses volumes massivos, expostos a temperaturas de 160 graus negativos, sejam apenas amônia e não água. Por esse motivo, os pesquisadores ficaram muito mais empolgados com a atual descoberta do que com a das geleiras intralunares. Por mais esparsas que sejam as moléculas encontradas em Clavius, definitivamente se trata de H2O.
A questão que se coloca agora é como poderia haver água em um ambiente tão inóspito e desprovido de oxigênio. Nenhum cientista oferece uma resposta precisa, mas especula-se que as moléculas tenham se formado com o impacto de cometas e asteroides ou que vieram com a poeira interplanetária que costuma se espalhar por corpos astronômicos que não têm proteção da atmosfera. Nem mesmo erupções vulcânicas lunares estariam descartadas.
Assim que foi anunciada a descoberta, começaram a circular comentários nas redes sociais, especialmente entre os apaixonados por ficção científica, sobre a coincidência entre a notícia e a trama do filme 2001: Uma Odisseia no Espaço, obra-prima dirigida por Stanley Kubrick a partir de um livro de Arthur C. Clarke. No longa-metragem lançado em 1968, cientistas americanos se veem forçados a inventar um caso de epidemia viral em sua base lunar para afastar os russos de um grande achado ao sul do satélite, perto da cratera Clavius.
De volta à realidade, o próximo passo lógico seria enviar sondas mineradoras para pousar na cratera e investigar, mas a Nasa tem um cronograma apertado em seu projeto Artemis, que pretende levar um homem e uma mulher à Lua até 2024. Seria o aguardado retorno desde a última missão Apollo, em 1972. No entanto, até que se saiba mais sobre a recente descoberta, os astronautas continuarão carregando a própria água na bagagem. Afinal, na mitologia grega, a deusa Ártemis é irmã gêmea de Apolo. Mas, mesmo sendo uma divindade, nem ela sobreviveria sem o líquido da vida.
Publicado em VEJA de 4 de novembro de 2020, edição nº 2711