A descoberta de um imenso reservatório de água nas profundezas da Terra
Ele pode estar por trás de grandes fenômenos geológicos
“Quem poderia imaginar, sob esta crosta terrestre, um oceano com marés vazantes e correntes, com ventos e tempestades?” A pergunta é proposta por um personagem de Júlio Verne em Viagem ao Centro da Terra. Na clássica aventura contada no livro de 1864, o romancista francês constrói um mundo nas profundezas do planeta, com um mar de peixes pré-históricos e répteis marinhos gigantes. As características pitorescas da trama são puramente fantasia, claro. Contudo, a imaginação de Verne talvez tenha encontrado agora um paralelo na realidade com o fortalecimento da teoria de que, sob nós, existiria um gigantesco reservatório de água, uma espécie de sexto oceano.
O primeiro achado a sugerir a presença de massa de água sob a terra surgiu em 2014, quando mineradores acharam em Juína, Mato Grosso, um diamante sem valor comercial, mas precioso para a ciência. A pedra continha ringwoodita, minério encontrado em meteoritos e que tem 1,5% de seu peso em água. Um time de pesquisadores internacionais examinou a gema, publicando em seguida um artigo na revista Nature, uma das mais reputadas do mundo.
A suposição: haveria uma vasta reserva de água na chamada zona de transição do manto terrestre, faixa que se estende de 410 a 660 quilômetros de profundidade. Entretanto a pedra, que pesava 0,09 grama, foi destruída durante as análises e não foi possível avançar nos estudos. Faltava outra prova, que agora acaba de aparecer. No fim de setembro, o mesmo grupo de cientistas relatou, também na Nature, a descoberta de um diamante muito parecido ao de Juína, mas de maior dimensão. Ele tem 1,5 centímetro e foi encontrado em Botsuana, na África. A pedra contém outros dois minérios (bridgmanita e ferropericlásio) que só podem ser formados a mais de 660 quilômetros de profundidade, o que reforça os achados de 2014. “É a primeira vez que encontramos essa combinação entre os minérios e a água”, disse a VEJA Fabrizio Nestola, da Universidade de Pádua, na Itália, integrante do pool de investigadores.
As informações indicam que a região de onde vem o diamante está encharcada. No rigor científico, porém, não seria um oceano. “Trata-se de uma rocha hidratada, com água disseminada”, esclarece Paulo Boggiani, do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo. O líquido provavelmente desempenha papéis em fenômenos geológicos, como as movimentações das placas tectônicas. Em que estado físico a água se encontra, qual seu volume ou de onde ela vem ainda são um mistério. Contudo, há suposições. A ringwoodita armazena quantidades de líquido tão altas que a zona de transição, onde ela se encontra, seria capaz de absorver seis vezes a quantidade de água dos oceanos, segundo comunicado da Universidade de Frankfurt, da Alemanha, que também participa das investigações. No entanto, como muita coisa é especulativa, a prudência recomenda esperar mais informações da ciência. A fantasia, é melhor deixar na mão da literatura.
Publicado em VEJA de 2 de novembro de 2022, edição nº 2813