Viva a tolerância
Em passo importante contra o obscurantismo e o preconceito, o STF determina que famílias homoafetivas não podem ser excluídas de políticas públicas
Na luta a favor das liberdades individuais e da diversidade, o STF tomou uma decisão histórica em 2011 ao reconhecer, por unanimidade, a união estável entre duas pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. A partir de então, casais homoafetivos começaram a ter os mesmos direitos civis que qualquer homem e mulher casados, como herança e plano de saúde, por exemplo. Em um novo passo contra o preconceito, o tribunal aprovou a criminalização da homofobia há três meses. A cada decisão desse tipo, a Corte é criticada por alas da sociedade que ainda pregam o obscurantismo. Mas os ministros continuam dando sinais firmes de que não vão recuar. O mais recente deles veio a público no dia 16, quando o STF determinou que famílias homoafetivas não podem ser excluídas de políticas públicas. Em seu voto, o ministro Alexandre de Moraes, que relatou o processo, afirmou que limitar o conceito de entidade familiar exclusivamente à união entre homem e mulher viola a Constituição.
Na ocasião, os onze ministros do Supremo votaram por extirpar o trecho de uma lei aprovada no ano passado pelos deputados do Distrito Federal. Ela definia como família apenas o “núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher”. A legislação, agora reformada pelo STF, foi proposta pelo deputado distrital Rodrigo Delmasso (Republicanos-DF) com o nebuloso objetivo de instituir “diretrizes para a elaboração e execução de políticas públicas voltadas para a valorização da entidade familiar no Distrito Federal”. Pastor da igreja evangélica Sara Nossa Terra, Delmasso já assumiu ter sido gay na juventude, passado do qual afirma se arrepender amargamente. Casado e pai de três filhos, o parlamentar está no segundo mandato na Assembleia do Distrito Federal. Do ponto de vista prático, a lei não apresentou nenhuma novidade em relação ao aparato legal já existente no país. Faz apenas proposições genéricas, afirmando, por exemplo, que o “Distrito Federal deve promover a segurança alimentar e o acesso à educação para todos os membros da entidade familiar”. A única “inovação” da lei foi mesmo eliminar os casais homoafetivos das políticas públicas para a família.
Pela óptica do deputado, o lar em Brasília formado por Jair Domingos Gonçalves, de 49 anos, Ricardo Trevisan, de 42, e suas duas filhas, Raira e Ranara, de 6 e 8, respectivamente, não seria considerado uma família. Gonçalves, aposentado e estudante de psicologia, e Trevisan, professor de arquitetura da Universidade de Brasília, adotaram as irmãs há dois anos. As meninas viviam em um abrigo em uma cidade-satélite, depois de ter sido retiradas da família biológica pela Justiça. A denúncia foi feita por vizinhos, que testemunhavam as frequentes surras sofridas pelas crianças, sempre sujas e mal alimentadas. Atualmente, as garotas, que levam o sobrenome Gonçalves Trevisan, frequentam a escola e fazem natação, balé e circo. As duas também aprenderam a responder que têm dois pais: o “pai Jair” e o “pai Ricardo”. Gonçalves conta que a decisão tomada pelo Supremo representou um alívio. “Ela repara um retrocesso”, diz. “Graças a Deus, temos como manter as meninas com nossos salários, temos plano de saúde para elas, mas leis desse tipo podem inflamar pessoas intolerantes. Uma pessoa homofóbica, que trabalhe em uma escola, por exemplo, pode se sentir respaldada a constranger não só a nós, adultos, mas as nossas crianças”, completa.
A lei proposta por Delmasso, que foi aprovada na Assembleia, havia sido vetada pelo então governador Rodrigo Rollemberg. A bancada evangélica, no entanto, não se deu por vencida e promulgou a legislação mesmo após o veto do Executivo. O caso foi parar no Supremo por meio de uma ação direta de inconstitucionalidade impetrada pelo Partido dos Trabalhadores. A decisão do STF mostra que a Corte continua funcionando como um farol, a jogar luz sobre iniciativas obscurantistas que volta e meia se manifestam nos mais diversos setores da sociedade. Ao reformar a lei distrital, o Supremo não encampou a tão falada ideologia de gênero. Apenas reafirmou que, no Brasil, todos são iguais perante a lei.
Publicado em VEJA de 25 de setembro de 2019, edição nº 2653