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Tensão na fronteira

O dia em que um incidente banal por pouco não provocou um conflito militar entre o Brasil e a Venezuela 

Por Marcela Mattos, de Pacaraima (RR)
Atualizado em 4 jun 2024, 16h02 - Publicado em 31 Maio 2019, 07h00

Era início da tarde de 24 de fevereiro, um domingo, quando a cúpula do Ministério da Defesa interrompeu o descanso para uma reunião emergencial. Militares de alta patente foram convocados pelo ministro Fernando Azevedo e Silva para discutir o fracasso da operação de envio de alimentos, remédios e material de higiene à Venezuela, país devastado pelo regime do ditador Nicolás Maduro. Naquele dia, quase 20 toneladas da ajuda humanitária doada pelos Estados Unidos, que seria entregue através da fronteira brasileira, não puderam entrar no território vizinho. Com medo de que o carregamento desestabilizasse ainda mais a sua gestão, exatamente o que pretendiam os governos brasileiro e americano, Maduro determinou o fechamento da fronteira. Houve confrontos entre venezuelanos favoráveis e contrários ao ditador, com direito a lançamento de coquetéis molotov e bombas de gás que respingaram em solo brasileiro. Na cidade de Santa Elena, a 15 quilômetros do Brasil, três pessoas morreram e dezenas ficaram feridas.

O nível de tensão já estava alto quando dois carros de combate do Exército venezuelano foram posicionados próximo a Pacaraima, cidade fronteiriça da Venezuela, localizada a 200 quilômetros de Boa Vista, a capital de Roraima. Seria o prenúncio de um ataque ao Brasil? Expoente da ala mais radical do governo, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, considerou o ato uma agressão e uma ameaça à soberania nacional e pressionou para que o governo brasileiro respondesse à altura. O chanceler queria uma resposta militar. O ministro da Defesa, então, convocou a reunião emergencial, que durou cinco horas e da qual participaram, entre outros, o chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, e o porta-voz da Presidência da República, general Otávio Rêgo Barros. Foram analisadas diversas possibilidades de resposta ao governo venezuelano — da negociação diplomática, como queria a ala ligada às Forças Armadas, ao confronto, como defendia o chanceler. Os militares, que se tornaram a reserva de moderação do governo Bolsonaro, concluíram que a ideia de Araújo era uma sandice e a descartaram. Por dois motivos.

Major Basante Marquez
FUGA – O major José Gregorio Basante: extorsão e salário de 80 reais (//Reprodução)

Primeiro: os militares brasileiros que atuam na fronteira negociaram com os militares venezuelanos, que cederam e fizeram recuar os carros de combate. Honraram, assim, a tradição diplomática nacional de não atuar como interventores, mas mediadores de conflitos. Segundo: os militares brasileiros concluíram que o Brasil não teria condição — nem financeira nem logística — de iniciar uma batalha. Mobilizar a estrutura de combate poderia implicar gastos de até 400 bilhões de reais, conforme cálculos preliminares de técnicos do Ministério da Defesa. Além disso, seria impossível organizar as tropas e direcionar o aparato necessário (munições, combustíveis, automóveis e suprimentos de manutenção) em tempo hábil. O Exército precisaria de pelo menos seis meses para se fazer presente na Região Norte em condições de guerrear com a Venezuela. Na reunião, também se descartou a possibilidade de um ataque aéreo, diante da informação de que as forças do país vizinho possuem mísseis russos que poderiam abater facilmente as aeronaves. Até surgiram dúvidas se tais mísseis estariam em boas condições ou se haveria militares capacitados para manejá-los, mas os brasileiros preferiram não pagar para ver. Também pesou o entendimento de que a própria população brasileira não apoiaria o conflito.

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“Quanto custa à mãe receber um filho dentro de um saco preto? A população brasileira está interessada nisso?”, questionou um dos participantes da reunião. Após o encontro, o Ministério da Defesa emitiu nota em que ressaltou a negociação direta entre militares brasileiros e venezuelanos para a solução do problema. “A fronteira do Brasil continua aberta para acolher os refugiados”, dizia o texto. A posição de Ernesto Araújo, que também seduzia o deputado Eduardo Bolsonaro, o filho Zero Três do presidente da República, havia sido descartada. A VEJA, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, disse que a linha de conduta do Brasil já está traçada: é seguir a Constituição, que determina a não intervenção em outros países (veja a entrevista). Por enquanto, a guerra é outra.

Por dia, uma média de 500 venezuelanos entram no Brasil pelo município de Pacaraima. São pessoas interessadas em comprar alimentos, gasolina e material de higiene, mas há também fugitivos da ditadura de Maduro. VEJA acompanhou dois dias da operação militar na fronteira e em Boa Vista. As cidades mais parecem redutos venezuelanos. Nas rádios, nas ruas e em cartazes é fácil encontrar o espanhol como idioma corrente. A área externa da rodoviária de Boa Vista foi transformada em um grande acampamento improvisado para receber quem não consegue vaga nos abrigos específicos, que estão lotados. No galpão também improvisado ao lado do embarque e desembarque dos ônibus, dormem cerca de 1 000 venezuelanos em barracas emprestadas pelo Exército. Eles recebem três refeições diárias e têm direito a banheiro e chuveiro, um luxo para quem, em momentos de maior desespero, chegou a se alimentar de lixo . “Meus filhos estavam passando fome. Viver nesta situação hoje é melhor do que a que vivíamos lá”, conta a venezuelana Aracelis Arteaga, de 30 anos.

Venezuelanos se refugiam no Brasil
POBREZA – Acampamento improvisado em Boa Vista: abrigo para cerca de 1 000 venezuelanos (Cristiano Mariz/VEJA)

O acolhimento aos venezuelanos já encorajou 101 militares a abandonar o regime de Maduro e vir para o Brasil. A maioria dos desertores é de baixa patente. VEJA apurou, porém, que pela primeira vez um militar mais graduado decidiu buscar refúgio no país. Comandante do Esquadrão de Cavalaria Motorizada, o quartel venezuelano mais próximo do Brasil, o major José Gregorio Basante fugiu para Pacaraima na noite de 11 de maio. Às autoridades brasileiras, ele informou estar sendo acusado injustamente de crimes como tortura e roubo de combustível por discordar das práticas impostas pelo regime venezuelano. Segundo a sua versão, exigiam que ele cobrasse propina de garimpeiros e pagasse 100 gramas de ouro todos os meses para se manter no posto, o que teria se negado a fazer. O major entrou no Brasil após o governo venezuelano mandar prendê-lo. Sua mulher também escapou com a filha de 1 mês no colo. Basante tinha certeza de que, se ficasse na Venezuela, seria morto.

A chegada de militares é vista como um trunfo pela inteligência do Exército brasileiro. Ninguém melhor do que os desertores para detalhar as estratégias de Maduro e as reais condições das forças venezuelanas. Os brasileiros souberam, por exemplo, que na véspera da tentativa de entrega da ajuda humanitária foram deslocadas dez viaturas blindadas para o quartel de Santa Elena. A ordem era acioná-las caso a entrada dos mantimentos se confirmasse. A inteligência brasileira também foi alertada da possibilidade de Maduro estar infiltrando seus agentes em campos de refugiados. Um dado colhido serviu para tranquilizar os militares: as forças venezuelanas estariam mais sucateadas do que as brasileiras. O salário de um oficial intermediário das Forças Armadas venezuelanas equivale a cerca de 80 reais.

Publicado em VEJA de 5 de junho de 2019, edição nº 2637

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