STF condena Collor e acrescenta mais um capítulo a biografia controversa
Ex-presidente foi acusado de receber entre 2010 e 2014 o equivalente a R$ 20 mi em propina de um esquema descoberto pela Operação Lava-Jato

Vinte e cinco anos atrás, Fernando Collor começou a escrever os primeiros capítulos de um livro que tinha como linha mestra da narrativa os momentos que antecederam o seu impeachment — que ele definia como as “páginas mais doídas” da vida dele. Na época, o ex-presidente estava com os direitos políticos cassados e cumpria uma espécie de autoexílio em Miami, nos Estados Unidos. Um político que leu os originais aconselhou o ex-mandatário a rever alguns trechos, especialmente os em que relatava supostos interesses contrariados que estariam, segundo ele, na raiz de sua deposição. Collor reconheceu que havia carregado demais nas tintas, amenizou o tom de algumas acusações e cortou adjetivos destinados a certos figurões. Depois da revisão, o trabalho foi mais uma vez submetido ao conselheiro, que o alertou sobre dois detalhes importantes: muitos dos personagens citados em situações complicadas ainda estavam vivos e parecia cedo demais para a publicação de algo que se assemelhava a uma autobiografia. De fato, a história de um dos mais controvertidos presidentes da República teria capítulos ainda mais doídos.

Na quinta-feira 25, o Supremo Tribunal Federal (STF) condenou Collor a prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Ele foi acusado de receber entre 2010 e 2014 o equivalente a 20 milhões de reais em propina de um esquema de desvio de dinheiro público descoberto pela Operação Lava-Jato na BR Distribuidora, subsidiária da Petrobras. Nesse período, o ex-presidente era senador e dirigente do PTB. Em troca de apoio político aos governos de Lula e de Dilma Rousseff, ele ganhou o direito de indicar um ocupante para a diretoria da estatal. Como “dono” do cargo, o ex-presidente recebia vultosas comissões de empresas que tinham contratos com a BR Distribuidora. O relator do processo, ministro Edson Fachin, fixou em 33 anos a pena de prisão do ex-presidente. Como houve divergência entre os ministros, o STF ainda não havia definido o tamanho exato da punição até o fechamento desta edição. Além de perder os direitos políticos pela segunda vez, Collor ainda terá de pagar uma multa milionária.

A condenação do ex-presidente, em tese, é o último marco da cronologia de uma vida repleta de surpresas e ineditismos. Collor foi o primeiro presidente eleito democraticamente após o regime militar, o primeiro a sofrer um impeachment, o primeiro a ter os direitos políticos cassado e o primeiro a responder a processo no Supremo Tribunal Federal por crime de corrupção. A sucessão de escândalos durante o seu governo parecia tão devastadora que, na época, muitos vaticinaram que dificilmente algo parecido se repetiria no Brasil e que ele jamais voltaria à política. Devido a falhas processuais, o STF arquivou as acusações contra o ex-presidente, ele cumpriu o período de oito anos de inelegibilidade e, em 2007, voltou a Brasília como senador por Alagoas. O poder e a influência, no entanto, jamais foram reconquistados. No Congresso, Collor permaneceu à margem dos grandes debates e, para ter algum espaço político, selou alianças com antigos desafetos — como Lula, por exemplo, a quem no passado já havia chamado de “cambalacheiro”.

O ex-presidente foi um dos primeiros peixes grandes fisgados pela Lava-Jato. Herdeiro de uma família tradicional de Alagoas, ele sempre ostentou um alto padrão de vida. A investigação mostrou que esse padrão havia crescido consideravelmente a partir de 2010, não por coincidência o ano em que ele passou a comandar politicamente a BR Distribuidora. Em quatro anos, a fortuna pessoal declarada por Collor cresceu quase três vezes, passando de 7 milhões para 20 milhões de reais. No decorrer das investigações, a Polícia Federal apreendeu na casa dele obras de arte e carros importados de altíssimo luxo adquiridos com dinheiro desviado do esquema de corrupção. A nova debacle começou a partir daí. O ex-presidente foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República em 2019. No ano passado, foi derrotado na disputa pelo governo de Alagoas, suas empresas entraram em processo de recuperação judicial, seu patrimônio encolheu e ele acumula uma montanha de dívidas, incluindo o IPVA dos carros de luxo que ele dividiu em parcelas, mas só quitou a primeira.

Sempre muito confiante, o ex-presidente nunca demonstrou muita preocupação com esse processo. Diante da conhecida morosidade da Justiça, ele acreditava que o caso poderia prescrever, o que por muito pouco não aconteceu. Dos dez ministros do STF, oito votaram pela condenação de Collor pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. O relator do processo, ministro Edson Fachin, considerou o ex-presidente culpado também pelo crime de organização criminosa, mas houve dois votos em sentido contrário. Os ministros Gilmar Mendes e Kassio Nunes Marques foram os únicos a votar pela absolvição, argumentando, entre outras coisas, que as investigações se basearam em delações premiadas. O rigor do tribunal chamou a atenção. Collor, que tem 73 anos, ao que tudo indica cumprirá um tempo em regime fechado e terá de pagar uma multa que pode chegar a 20 milhões de reais.


Dos 125 investigados pela Lava-Jato, o STF condenou até hoje apenas quatro de mais de 100 réus — entre eles um ex-deputado que já morreu e outro que está recorrendo em liberdade. A defesa de Collor já anunciou que pretende apresentar recursos contra a decisão, o que pode gerar algum ajuste na sentença, mas não livrará o ex-presidente da condenação. Recentemente, o STF decidiu acabar com a prisão especial para quem possuía diploma de curso superior. Em tese, portanto, depois de analisados os recursos e se confirmada a condenação nos termos propostos pelo relator, o ex-presidente pode ficar preso numa cela comum, provavelmente na penitenciária da Papuda, em Brasília.

Na história republicana há registros de sete ex-presidentes que foram presos, cinco deles em meio a golpes e quarteladas. Em 2019, Michel Temer foi detido preventivamente por seis dias, suspeito de envolvimento em irregularidades que nunca foram comprovadas. Lula chegou a ser condenado a 26 anos de prisão por corrupção, ficou 580 dias cumprindo pena, até que o STF anulou as sentenças, apontando irregularidades processuais no âmbito da Operação Lava-Jato, que, aliás, produziu mais um episódio controverso. Se nenhuma reviravolta ocorrer, Collor será o primeiro ex-presidente da República efetivamente condenado e preso por corrupção — capítulo que pode não ser ainda o último, mas certamente é o mais constrangedor da biografia de alguém que um dia já ocupou o posto de homem mais poderoso do país.
Publicado em VEJA de 31 de maio de 2023, edição nº 2843