Resistência ao ajuste nos gastos expõe distância entre governo e a sociedade
O problema fundamental: boa parte das soluções para problemas reais não encontra guarida na gestão de Lula por questões políticas

Quando o pacote do corte de gastos foi anunciado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, nos últimos dias de novembro de 2024, o dólar disparou para além dos 6 reais, expressando o descontentamento do mercado com a redução enxuta dos gastos públicos que era proposta, somada a uma iniciativa fora de hora (a isenção de imposto de renda para quem ganha até 5 000 reais mensais), decidida na contramão do que se esperava.
A inquietação com o aparente desdém do governo Lula em relação à necessidade urgente de calibrar o Orçamento, que já vinha se mostrando há algum tempo, ganhou intensidade com declarações reiteradas de gente do governo — inclusive o presidente — e aliados de que a má repercussão era nada mais do que uma sabotagem do setor financeiro para minar o projeto que saiu vencedor da eleição. A demonstração da falta de disposição para enxergar o momento colocou ainda mais no horizonte o risco de uma crise fiscal, que seria desastrosa para o país. O episódio, que está longe de ser superado, foi o exemplo mais agudo, mas não único, da dissonância crescente que se observa entre o que pensa o poder público e o que a sociedade espera dele. É dissonância péssima.
O problema fundamental: boa parte das soluções não encontra guarida no governo por uma questão política. “Há uma cegueira. O presidente, os parlamentares do PT e os dirigentes do partido estão em modo de negação. Lula é refém da visão segundo a qual o que impulsiona a economia é o gasto público”, diz Maílson da Nóbrega, colunista de VEJA, ministro da Fazenda de José Sarney. Embora o Congresso tenha desidratado boa parte do pacote, o fato é que muitas medidas necessárias nem chegaram a ser postas no projeto porque houve pressão durante a sua formulação. “O pacote não trazia nenhum corte, apesar da retórica do governo. No máximo, uma redução no ritmo de crescimento do gasto”, diz Alexandre Schwartsman, diretor do Banco Central durante o primeiro mandato de Lula, também colunista de VEJA. Para ele, o governo errou ao não encaminhar todas as intervenções cruciais porque é dele a responsabilidade de formular a política econômica e será ele quem será cobrado se algo der errado. “Quando Dilma levou o país para o buraco, quem caiu foi ela. O interesse do Congresso é mais restrito”, completa.

Isso não isenta, no entanto, o Legislativo, que vem contribuindo com intensidade para o descompasso crescente entre as autoridades e a sociedade. Um bom exemplo foi a reforma tributária. Projeto essencial ao país, que há tempos demanda uma tributação mais justa, ele saiu do Congresso alvejado por dezenas de lobbies, que conseguiram manter privilégios com o apoio de deputados e senadores, reproduzindo a velha máxima de que “farinha pouca, meu pirão primeiro”. “Com a quantidade de subsídios cruzados concedidos, beneficia-se o particular e não se olha o geral. São grupos que já pagam muito pouco”, diz Marcos Lisboa, economista e secretário do Ministério da Fazenda no primeiro mandato de Lula. O relator da reforma tributária no Senado, Eduardo Braga (MDB-AM), por exemplo, foi um dos que defenderam o regime diferenciado para áreas de comércio como a Zona Franca de Manaus, que tiveram o benefício estendido até 2073. Entre os vários triunfos inexplicáveis de grupos de pressão, a direita conseguiu a proeza de excluir armas e munições do imposto seletivo, o chamado “imposto do pecado”, que prevê alíquotas maiores para produtos que fazem mal à população — como se não fosse o caso desse tipo de produto.

Outro exemplo da prevalência de interesses específicos sobre o cotidiano foi dado na discussão dos supersalários. Incluída pelo governo no pacote do corte de gastos, ela ruiu após intensa movimentação de entidades de juízes, procuradores e membros do Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria, setores onde é comum encontrar generosas extrapolações do teto salarial do país — que já é de mais de 44 000 reais mensais — por meio dos imorais penduricalhos, que não só sobrevivem como crescem ao longo dos anos. Associações de magistrados chegaram a divulgar notas públicas prometendo um “êxodo” de profissionais da categoria caso o fim dos benefícios extras passasse no Legislativo. Representantes das categorias se deslocaram em peso até Brasília para pressionar os parlamentares. Apesar de os supersalários serem menos de 1% de todo o gasto com funcionalismo público, eles custaram 33 bilhões de reais ao erário nos últimos cinco anos. “O extrato com privilégios imorais e ilegais é uma fração muito pequena. O servidor público, no geral, não é bem remunerado. A cúpula é que é, como as carreiras jurídicas e os militares”, diz o professor de direito do Estado da USP, Conrado Hubner. Não é por menos que a reforma administrativa, que poderia enfrentar a questão, dormita nas gavetas do Congresso desde 2020. É a única das grandes reformas que não deu um passo à frente — a trabalhista, a previdenciária e a tributária foram aprovadas nos últimos anos. “Uma reforma administrativa séria precisa enfrentar os supersalários”, completa Hubner.

Se o Congresso é, de fato, alvo de chantagens que travam ou desvirtuam as mudanças cruciais, também é verdade que deputados e senadores não abrem mão do “espírito de corpo” em relação aos seus interesses. Um exemplo eloquente foi a crise política e quase institucional no final de 2024 por conta das emendas, que entraram na mira do ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal. A luta desesperada por nacos bilionários do Orçamento ameaçou travar o andamento de pautas prioritárias, como o corte de gastos. Sem muito barulho, como é de costume, os parlamentares também tentaram aumentar o Fundo Eleitoral, direcionado a campanhas políticas, na Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2025. A ideia era que o valor, já em indecentes 4,9 bilhões de reais, fosse reajustado pela inflação desde 2020. Lula vetou, mas poucos duvidam que o veto cairá no Congresso, como ocorreu em anos anteriores.

A falta de sintonia do Congresso e da classe política com os interesses reais do país não se dá somente quando o assunto é dinheiro. Ao longo de 2024 não foram poucas as vezes em que o Parlamento perdeu tempo e energia e contaminou o debate público com a imposição de pautas secundárias, anacrônicas ou mesmo irrelevantes para a sociedade. Temas como a volta do voto impresso, uma velha obsessão da direita brasileira, que parecia um assunto superado, voltou à cena e chegou a ser aprovado na Comissão de Constituição e Justiça, a mais importante da Câmara, nos últimos dias de 2024. A mesma comissão encontrou tempo para aprovar a proibição do aborto em qualquer circunstância, inclusive as legalmente previstas (casos de estupro, anencefalia ou risco de morte da mãe). “É uma agenda oposta a tudo que precisamos em um país cujas deficiências educacionais são bem conhecidas”, diz o cientista político Eduardo Grin, da FGV.
Enquanto gasta energia política para defender privilégios ou pautas eivadas de demagogia barata, o poder público patina — quando não atola — na hora de resolver questões fundamentais para os cidadãos. É o caso da segurança pública, preocupação crescente do brasileiro que só aparece em pautas como a imposição da castração química de estupradores, a flexibilização de armas para civis e o fim da saidinha de presos, que rendem votos fáceis em uma sociedade assustada, mas estão longe de resolver o problema. O ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, tenta fazer andar a PEC da Segurança, que aumenta as atribuições do governo federal e empodera corporações como a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal para fortalecer o cerco às organizações criminosas, mas esbarra na má vontade de governadores que temem a perda de poder. Enquanto nada acontece e a violência continua pressionando a população, os prefeitos vão armando cada vez mais suas guardas embalados pelo eco que encontram no eleitorado, como mostraram claramente as últimas eleições.

Outro bom exemplo da incompetência atual do poder público para destravar agendas importantes é a questão ambiental. Prestes a receber o maior evento do planeta nesta seara, a COP30, conferência ambiental da ONU, em Belém, o país não consegue deslanchar um movimento efetivo para explorar de forma civilizada o seu vasto capital ambiental. Um bate-cabeça interminável e aparentemente insuperável opõe ambientalistas a agentes econômicos, em especial produtores rurais, arrastando comunidades e povos tradicionais. Na luta sem trégua, ficam pelo caminho projetos estratégicos, como a exploração de petróleo na Margem Equatorial e a construção da Ferrogrão, suspensa desde 2021 pelo STF a pedido do PSOL. Também cabe nesse balaio a questão do marco temporal para demarcação de terras indígenas, que, a pretexto de resolver o problema, virou um grande imbróglio envolvendo Judiciário, Executivo e Legislativo, enquanto conflitos armados pipocam pelo país, como o que deixou quatro indígenas baleados no oeste do Paraná no início do ano.

Esse grande hiato entre o que o país precisa e aquilo a que os agentes do Estado têm se dedicado é nocivo, porque aumenta a desesperança quanto à capacidade do Estado de melhorar a vida dos brasileiros. Um dos efeitos mais graves pode ser um indesejado descrédito da política, que, como se sabe, é fundamental para um país. “Os partidos têm ficado cada vez mais irrelevantes, o que enfraquece a democracia e privilegia uma atuação política muito centrada no Congresso. O papel das organizações e movimentos sociais se reduz, e a sociedade vai perdendo o elo com o sistema político”, avalia Eduardo Grin. Também é preciso ressaltar a juventude da moderna democracia brasileira, que sobreviveu a longos e recentes períodos ditatoriais, subjugados também pelo patrimonialismo de grupos de interesse. “Países como o nosso ainda não têm na população uma cultura cívica que entenda que a participação popular pode afetar as decisões governamentais e políticas”, avalia a cientista política e professora da UFRJ Mayra Goulart. Os problemas são muitos, mas podem ser enfrentados. Nada acontecerá, porém, se houver inadequação econômica e alienação política. Brasília, reafirme-se com estridência, precisa ouvir o Brasil.
Publicado em VEJA de 10 de janeiro de 2025, edição nº 2926