Relação com Congresso traz nova dor de cabeça para as Forças Armadas
O desafio dos militares diante das propostas de cortes no orçamento, de mudança nas regras da Previdência e dos projetos que criam restrições à categoria
Desde que foi eleito para o terceiro mandato, o presidente Lula não tentou esconder de ninguém a sua falta de confiança nos militares. Alimentando uma relação conturbada logo na largada, ele dizia ter certeza do envolvimento de uma ala das Forças em uma tentativa de ruptura democrática no 8 de Janeiro e determinou uma caça às bruxas para depurar a presença de “golpistas” no seu entorno. Todos ficaram sob suspeição. Dezoito meses depois e após acenos de pacificação de ambos os lados, o clima belicoso está arrefecido: tanto os militares quanto o governo baixaram as armas, e as divergências, garantem, estão superadas. Por outro lado, a fonte de dor de cabeça das Forças Armadas agora atravessa a Praça dos Três Poderes e alcança o Congresso, onde há articulações em torno de projetos que mexem no bolso e alteram certas prerrogativas da categoria. O estado de alerta foi novamente acionado.
Blindados dentro e fora do Parlamento, os militares são historicamente poupados de mudanças que atingem alguns de seus privilégios. Em meio ao arrocho nas contas, porém, cresce a pressão para que certos benefícios sejam revistos. Na última semana, o governo anunciou um contingenciamento bilionário para ajustar os gastos à meta fiscal. O Ministério da Defesa não saiu ileso e foi afetado por uma tesourada de mais de 600 milhões de reais. Antes da decisão, o titular da pasta, José Múcio, procurou Lula e os colegas Rui Costa (Casa Civil) e Fernando Haddad (Fazenda) para tentar mostrar que não havia espaço para cortes — sustentou que os 10 bilhões de reais destinados a investimentos do ministério é um dos menores e ainda caiu à metade nos últimos dez anos. Lula ouviu o apelo, mas não se sensibilizou.
Também mirando a meta fiscal, as principais lideranças do Congresso defendem uma nova reforma da Previdência, cujo rombo ultrapassou os 400 bilhões de reais em 2023. Apenas os militares representam quase 50 bilhões desse prejuízo e, diferentemente do que se viu em propostas de ajustes anteriores, não devem se safar desta vez. Por isso, a insatisfação, embora silente, é generalizada. “É um assunto em que eles não aceitam tocar”, resume um interlocutor com trânsito na cúpula das Forças Armadas. Hoje, um militar se aposenta mantendo o salário integral da ativa, que pode chegar a quase 40 000 reais no caso de generais, e, como se fosse uma espécie de prêmio por vestir o pijama, ainda recebe um adicional de oito salários. Além disso, em caso de morte, as filhas solteiras têm direito a uma pensão vitalícia — benefícios que valem inclusive para militares que foram expulsos por cometerem algum crime.
Esses privilégios foram alvo de um recente questionamento do Tribunal de Contas da União, que vê excessos. “O sistema de proteção dos militares é o que impõe maior custo à sociedade por beneficiário e, por isso, deve ser objeto de atenção, estudo e debate”, destacou Walton Alencar, ministro do TCU, ao analisar as contas do governo, lembrando que a categoria ainda paga uma alíquota de imposto sobre as pensões menor do que a dos servidores civis. Para tentar evitar uma mudança radical, foi criado um grupo, formado pelo Ministério da Defesa e por representantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, que pretende apresentar uma proposta de reforma ao Congresso. Em paralelo a isso, já está em ação um intenso lobby entre os parlamentares pela manutenção de algumas vantagens e contra os cortes.
Um dos argumentos usados é o de que é perigoso cortar investimentos num momento em que o mundo busca reforçar seu aparato bélico. Há casos notórios da eclosão de guerras na Europa e no Oriente Médio, e o Brasil não estaria tão distante do fogo cruzado. Membros da cúpula do Congresso foram alertados, por exemplo, de que a situação na fronteira com a Venezuela e a Guiana poderia voltar a se complicar. Os dois países travam uma disputa pelo território de Essequibo. Desde o ano passado, militares brasileiros reforçam a vigilância na região. A restrição orçamentária poderia comprometer esse trabalho. Além disso, dizem, haverá um aumento do fluxo migratório de venezuelanos que fogem da ditadura chavista. O recado é que, enquanto todos estão se armando, o país vê seu orçamento minguar, colocando em risco a segurança nas fronteiras.
Para além da discussão financeira, os militares também se mostram incomodados com propostas que criam restrições à categoria. Estão em tramitação no Congresso projetos que determinam que aqueles que queiram disputar eleições ou ocupar cargos públicos deverão passar para a reserva. O senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS), general aposentado, classifica essas ideias como “revanchismo” pelo 8 de Janeiro e disse que elas rebaixam os militares a “cidadãos de segunda categoria”. Claro, ele está falando em nome de seus antigos colegas de farda. O fato é que as Forças Armadas terão de enfrentar todas essas questões num território que até pode parecer hostil, mas é o palco legítimo para esse tipo de embate: o Parlamento.
Publicado em VEJA de 2 de agosto de 2024, edição nº 2904