Para constitucionalista, Supremo “invade poderes do Legislativo”
André Marsiglia critica decisão do ministro Flávio Dino de mandar investigar emendas e suspender pagamentos

Para o advogado constitucionalista e professor André Marsiglia, a decisão do ministro Flávio Dino de determinar a investigação sobre a liberação de emendas parlamentares e impedir novos pagamentos é mais um caso em que o Supremo Tribunal Federal invade os poderes do Legislativo. Doutorando em direito pela PUC-SP, Marsiglia lançou este ano o livro Censura por Toda Parte, que aborda a liberdade de expressão e faz duras críticas ao STF.
O advogado não discorda de Dino quanto a “degradação institucional” em torno das emendas, com denúncias sobre obras malfeitas, desvios de verbas e apreensão de malas de dinheiro em operações policiais, mas isto não pode fazer com que a competência de certos assuntos seja transferida do Congresso para o Judiciário.
Membro da Comissão Especial de Liberdade de Imprensa da OAB-SP e da Comissão de Entretenimento e Mídia do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), Marsiglia aponta outras áreas em que o Supremo estaria “invadindo” a competência do Congresso, como a discussão sobre liberdade de expressão. Para o constitucionalista, o STF tenta impor à sociedade uma liberdade de expressão enquadrada em preceitos morais. Marsiglia também discorda das penas impostas pelo Supremo aos vândalos do 8 de Janeiro. A seguir, os principais trechos da entrevista:
Como o senhor vê a decisão do ministro Flávio Dino de suspender o pagamento de emendas e determinar investigação da Polícia Federal? Entendo que esse caso, a priori, não deveria estar com o STF, creio que essa é uma prerrogativa do Congresso, tanto esta decisão quanto as anteriores. Entendo como invasão dos poderes do Legislativo. Claro que o próprio Legislativo não vem tratando a questão das emendas da forma mais republicana possível, mas isso não pode fazer com que a competência do assunto migre para o STF.
Esta última decisão do ministro Flávio Dino é baseada numa petição do Psol. O STF sempre dá duas justificativas para invadir o campo de atuação do Congresso. Uma delas é dizer que o Congresso foi omisso em alguns assuntos e eles foram obrigados a tratar do tema. Eu discordo disso, porque quando o Congresso rejeita um tema ou quando é omisso em relação ao tema, está dando a sua resposta pública. O Congresso não é obrigado a votar. O STF diz que sua voracidade de tratar de todos os temas hoje em dia se dá porque os partidos ou as pessoas ajuízam as ações, mas o STF pode muito bem se recusar a julgar um tema por entender que este tema é da alçada do Congresso. O STF acaba abarcando todos os temas que são do seu interesse.
Alguns críticos vislumbram em certas decisões do STF uma ação político-partidária. ‘Político-partidária’ é difícil dizer. No caso dessa última decisão do ministro Flávio Dino, não creio que necessariamente as decisões estejam vinculadas a uma visão do PT, mas a uma visão ideológica, mais progressista, à esquerda, com absoluta certeza isso fica claro nas decisões dele, não apenas dessa, como nas demais. De certa forma é natural. Todos os ministros têm a sua visão ideológica, mas isso não pode estar submetido à técnica e à isenção.
Os inquéritos conduzidos pelo ministro Alexandre de Moraes se enquadrariam nesse contexto? Esses inquéritos nasceram de forma irregular desde o início, com uma competência pouco clara, como se o regimento interno do STF permitisse que eles investiguem críticos em redes sociais. Temos uma sucessão de ilegalidades nesses inquéritos. Criaram uma jurisprudência de exceção que agora vai sendo mantida. Tudo que decorre desses inquéritos , entendo como irregular, nulo e ilegal, por conta do vício de origem. Em abril, os inquéritos farão seis anos. Para manter uma investigação por seis anos, você precisa entender que as investigações não estão sendo minimamente suficientes, porque não chegaram a lugar nenhum, ou não estão prestando contas a nós do que está sendo investigado, porque está tudo sob sigilo. Em ambos os casos, estamos diante de uma irregularidade.
Por que o senhor se diz muito preocupado com a liberdade de expressão no Brasil? Vamos lembrar que em 2019 esses inquéritos começam com restrições à liberdade de expressão, com a matéria ‘o amigo do amigo do meu pai’. Creio de que lá para cá, o que o STF criou em termos de jurisprudência é uma ideia de que a liberdade de expressão deve ser moral, deve obedecer a certos preceitos para ser lícita. A liberdade de expressão é justamente a possibilidade de você ser até imoral, de você confrontar-se com as ideias do outro e daí nascer uma nova ideia. O confronto é a essência da liberdade de expressão. Estamos criando, a partir dessa visão do STF, uma visão diferenciada, de que a liberdade deve ser moral, isso é uma visão moralista da liberdade de expressão. Me preocupa muito, porque se você direciona a liberdade para uma direção moral, ela deixa de ser liberdade.
Não é certo dizer que o protagonismo do STF após o 8 de janeiro sufocou o golpismo? Entendo que o houve no 8 de Janeiro foi uma invasão de prédios públicos, com depredação de patrimônio público, o que se encaixa no crime de vandalismo. Não vejo nada até agora que pudesse suscitar um golpe de estado ou tentativa de golpe de Estado. Parece que algumas pessoas ali exerceram seu direito de se reunir e parte invadiu os prédios públicos e cometeram vandalismo. Esse julgamento, aliás, é cheio de irregularidades.
Por quê? Ainda que tivessem tentado dar um golpe, há um exagero imenso nessas penas, porque essas pessoas estão sendo condenadas por dois crimes que são a mesma coisa: golpe de Estado e abolição violenta do Estado. Mesmo para as pessoas que entendem que houve um golpe, ainda assim haveria uma grande irregularidade. Há falta de individualização de condutas, as pessoas estão sendo julgadas de forma massificada e, sobretudo, estão sendo julgadas sem direito à segunda instância, porque a última instância está sendo a primeira.