Os bastidores da guerra familiar que envolve o ex-âncora Cid Moreira
Documentos aos quais VEJA teve acesso expõem disputa que afeta o dono de fortuna avaliada em 40 milhões de reais
Dono de voz grave onipresente nos lares brasileiros durante três décadas com seu indefectível “Boa noite”, Cid Moreira se vê agora do outro lado do balcão. O ex-âncora do Jornal Nacional, 93 anos, virou notícia ao ser lançado para o epicentro de um barraco familiar que chegou há um mês aos tribunais. VEJA teve acesso com exclusividade a documentos que serão anexados ao processo no qual os herdeiros — o comerciante Rodrigo Moreira, 51 anos, seu filho biológico, e o cabeleireiro Roger Moreira, 45, adotado aos 25 — pedem a interdição do pai, argumentando não ser mais capaz de gerir a própria vida. E cavucam ainda mais fundo: querem a prisão de sua atual mulher, Fátima Moreira, 57 anos, com quem Cid Moreira é casado há quinze e que estaria dilapidando um patrimônio estimado em 40 milhões de reais.
Os papéis que vêm à luz (veja os trechos) levantam suspeitas sobre transações capitaneadas por Fátima e suscitam dúvidas de que a assinatura que Cid teria cravado em alguns registros é mesmo autêntica. Na ação, protocolada na Vara do Idoso de Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro, onde o casal reside, os herdeiros acusam a madrasta de maus-tratos, cárcere privado e solicitam a guarda do pai. “Ele está senil e sob o domínio dela. Essa mulher o isolou, está se apropriando do dinheiro dele e há quem diga que o mantenha dopado”, dispara Roger, no meio de uma contenda que ainda promete muitos capítulos. “Cid está 100% lúcido. Os filhos serão acionados por crime de denunciação caluniosa”, rebate o advogado João Francisco Neto.
Um naco respeitável do patrimônio acumulado à frente da bancada do JN, e depois emprestando a voz a gravações da Bíblia em CDs vendidos aos milhões, já se foi. Junto com Fátima, Cid se desfez da mansão em que viveu na Barra da Tijuca, Zona Oeste carioca, de seis terrenos no interior de São Paulo, de pelo menos uma casa na região serrana fluminense e de um estúdio de gravação no Rio — a maior parte com valores abaixo dos de mercado. Uma dessas negociações chama especial atenção por ter gerado lucro vultoso: Fátima adquiriu por 500 000 reais um imóvel no município paulista de Mogi Mirim, em junho de 2021; um mês mais tarde, vendeu por 950 000 reais. Em outra transação, ela assina com o nome de solteira, o que pode vir a caracterizar falsidade ideológica. Até conhecer o marido, Fátima atuava como jornalista freelancer. Uniram-se em 2006 em regime de separação legal de bens: tudo o que for arrematado pós-enlace será rachado meio a meio, e ele só dispõe em testamento de 25% de seu quinhão. O resto é dos herdeiros. “O objetivo dos filhos não é dinheiro, mas garantir a segurança do pai, que está com problemas de demência decorrentes da idade, e o repatriamento dos bens subtraídos por ela”, diz Angelo Carbone, advogado de Roger e Rodrigo.
Com a temperatura da encrenca elevada, o casal Moreira tem disparado contra-ataques nas redes. Em vídeo, eles aparecem em uma mesa bem-posta, enquanto a mulher diz que “estão tristes, mas em paz”, e Cid enfatiza: “Você é a minha escolhida e quem cuida de mim”. Há uma semana, foi a vez de Célio, irmão do ex-apresentador, surgir a seu lado classificando como “infâmia” a investida dos filhos. No processo, que desencadeou a instauração de um inquérito, Fátima é acusada de “confinar o marido” e lhe “servir comida estragada, vencida”. Uma das testemunhas arroladas pelos herdeiros, o caseiro Manoel de Lima, que trabalhou 26 anos para Cid, relata a VEJA: “Fátima saía muito, ele ficava sozinho e às vezes a mesma comida era servida dez, quinze dias”. A cozinheira Ana Lúcia de Souza, que ainda trabalha na casa, fornece outro ângulo dos patrões. “Ela faz tudo para ele, que é vegetariano e gosta de muitos pratos nas refeições”, garante. Após uma década de convivência com Cid, a fisioterapeuta Noory Lisias também refuta as acusações: “Isso é uma loucura. Ele está ciente de tudo e não tem perfil submisso”. Advogado de Fátima, Fernando Ayres Motta sustenta que o ex-âncora passa tão bem que não parou de trabalhar. “Ele ainda faz muitas narrações e comerciais”, assegura.
Os filhos andam remexendo ainda em outro vespeiro. Descobriram que as três firmas pelas quais Cid recebia seus proventos foram extintas e, hoje, pagamentos seguem para a Fama Comunicações e Voz, só de Fátima. É essa empresa que aparece no contrato do comercial que ele fez para uma telefônica com Ivete Sangalo, levando cachê de 355 000 reais. O próximo passo é pedir à Justiça que rastreie o destino do salário que o ex-apresentador recebe até hoje da Globo, estimado em 150 000 reais. Cid, que deixou o comando do JN em 1996, após 27 anos, é contratado da emissora há 52. “Desde que meu pai se juntou à Fátima, fui alijado. Em 2014, recebi um e-mail avisando que ele iria me deserdar e não consigo mais contato”, lamenta Roger. Rodrigo, por sua vez, diz que o pai sempre foi ausente e até entrou com um processo contra ele “por abandono afetivo”. Perdeu. Cid Moreira já foi à delegacia prestar depoimento e, nos próximos dias, será a vez de os filhos serem ouvidos. O “boa-noite” já não soa mais sincero.
Publicado em VEJA de 1 de setembro de 2021, edição nº 2753