O único brasileiro vivo condenado por genocídio é retrato de terra sem lei
Entradas e saídas de criminoso da prisão são o exemplo maior da impunidade que reina na Amazônia
Um dos bandidos mais perigosos do país voltou à cadeia, pela quarta vez, no dia 3 — e sua prisão trouxe à memória um momento de violência e tensão que, de novo, ronda a Amazônia. Pedro Emiliano Garcia foi um dos autores do massacre de Haximu, em 1993, quando 22 garimpeiros e pistoleiros invadiram uma tribo e mataram dezesseis indígenas, entre eles um bebê, quatro crianças, três adolescentes e duas idosas. Liderado por Pedro Prancheta, como o criminoso é mais conhecido, o ataque, em meio à corrida do ouro que tomou conta da área na virada dos anos 80 para os 90, teve ampla repercussão pelo nível de crueldade. Prancheta acabou sendo sentenciado por genocídio e é atualmente o único brasileiro vivo condenado por esse tipo de crime.
O garimpo ilegal, que hoje espalha a Covid-19 pelas tribos, devasta a floresta, polui rios e desencadeia violência, é visto na região como um trabalho normal e lucrativo. Por essa óptica, pode-se dizer que Pedro Prancheta, de 59 anos, é um “profissional” de sucesso — passou de dono de balsas a proprietário de aeronaves que abastecem a mineração ilegal com mão de obra, combustível e equipamentos. Nascido em São Luís (MA), ele já coordenava nos anos 80 um grupo que adentrava a floresta atrás de ouro. Foi nesse contexto que aconteceu o massacre de Haximu. Uma briga por causa de uma rede levou um índio a disparar contra um garimpeiro, sem atingi-lo. Vinte dias depois, os mineradores armaram uma emboscada e mataram quatro índios. Houve revide, e um garimpeiro foi morto dias depois. A guerra estava deflagrada. Preparados para o conflito, os índios deixaram mulheres e crianças na aldeia, porque imaginavam que elas “nunca seriam atacadas pelos inimigos”, conforme denúncia do Ministério Público Federal. Enganaram-se. “Os garimpeiros ficaram todos de um lado e atiraram por alguns minutos, matando todos que ali se encontravam. (…) Goiano Doido (pistoleiro) meteu a faca numa criancinha”, relatou Prancheta em depoimento no qual contou que ficaram dois dias andando pela mata até achar a aldeia e admitiu atuação na chacina, embora não tenha dito quem matou quem, conforme a Procuradoria da República em Roraima. Segundo testemunha, ele portava espingarda e revólver.
Mas nem o relato do banho de sangue o deixou muito tempo na cadeia. Ele cumpriu apenas seis anos em regime fechado dos vinte da condenação. Voltou ao crime e foi preso em duas operações da Polícia Federal — Xawara (2012) e Tori (2018) —, todas mirando o garimpo na terra ianomâmi. Ficou menos de dois meses no cárcere, embora as acusações incluam usurpação de bens da União, extração ilegal de recursos minerais, transporte de substância tóxica (mercúrio), lavagem de dinheiro e organização criminosa. No momento em que acabou detido no último dia 3, estava com mais de 2 quilos de ouro, entre barras e correntes. Preso numa cela de triagem em Boa Vista, em Roraima, não deve demorar a voltar à floresta. Seu advogado, Alain Delon (nenhum parentesco com o ator francês, lógico), diz que ele já cumpriu a pena por genocídio, que as outras acusações não foram julgadas e que ele agora foi preso sem flagrante — “estava em casa e não na área de garimpo” — e “somente pelas barras de ouro”.
A história de Pedro Prancheta dá uma boa amostra de como funciona o ciclo de violência e impunidade na Amazônia. Após o massacre, os mineradores ilegais foram expulsos da terra ianomâmi, mas de uns anos para cá a invasão voltou a se acelerar. “A ameaça de genocídio contra os índios é iminente. Hoje, são mais de 20 000 garimpeiros lavrando o ouro na terra deles”, diz o subprocurador-geral da República Luciano Maia, que atuou no processo de Haximu. No fim de junho, dois indígenas morreram baleados em um ataque de garimpeiros na região. Os criminosos conseguiram escapar. A detenção de Prancheta ocorreu em meio a uma ofensiva liderada pelas Forças Armadas, a Operação Verde Brasil 2, que deteve em torno de 150 garimpeiros e madeireiros. O vice-presidente, general Hamilton Mourão, que comanda a ação, sabe o tamanho da encrenca. Na quarta, 15, afirmou que “tirar garimpeiros de lá não é a mesma coisa que tirar camelô” da rua. A história de Pedro Prancheta é a prova de que vencer a impunidade na Amazônia não é mesmo uma missão fácil.
Publicado em VEJA de 22 de julho de 2020, edição nº 2696