O Ministério da Cloroquina: quem são os integrantes do “gabinete paralelo”
Eles influenciaram Bolsonaro a optar pelo tratamento precoce e viraram alvo da CPI da Pandemia
Donald Trump foi o responsável por alardear globalmente no início do ano passado os supostos benefícios da hidroxicloroquina contra o coronavírus. Fã número 1 do então presidente americano, Jair Bolsonaro embarcou cegamente no mesmo discurso e apostou suas fichas no remédio e em sua variante mais popular, a cloroquina. Essas drogas até se mostraram promissoras nos primeiros testes, mas depois passaram a ser desclassificadas pela esmagadora maioria da comunidade científica. Tais evidências, no entanto, foram incapazes de mudar a postura do capitão, que não esconde de ninguém sua inabalável pregação pró-cloroquina. O que não era tão conhecido até agora eram a importância e o estilo de operação da rede informal de conselheiros que o influenciaram a transformar o remédio em uma de suas principais estratégias para combater a pandemia. Esse grupo é formado por médicos e empresários que orbitam os círculos do poder, assessores palacianos, políticos da base ideológica e os filhos Zero Dois e Zero Três do presidente (Carlos e Eduardo Bolsonaro). O chamado “gabinete paralelo” influenciou na demissão de dois ministros da Saúde (Henrique Mandetta e Nelson Teich, que declararam ter resistido à pressão de incluir o remédio em protocolos oficiais), ajudou a insuflar estoques gigantescos do remédio (a produção aumentou em 100 vezes no laboratório do Exército), bancou propagandas da “solução” em outdoors e nas redes sociais de influencers, criou um aplicativo para receitas instantâneas e esteve por trás até de uma mobilização do Itamaraty para adquirir o insumo da droga em outros países. Vale sempre lembrar: se tamanha mobilização fosse feita na direção certa, como na adoção das medidas de precaução e na priorização da compra de vacinas, o Brasil não estaria hoje perto da triste marca de quase meio milhão de mortos por Covid-19.
Não por acaso, vários integrantes da turma entraram na mira da CPI da Pandemia. Na próxima terça, 25, as atenções dos senadores estarão voltadas para Mayra Pinheiro, secretária de Gestão de Trabalho e da Educação do Ministério da Saúde. Conhecida como “Capitã Cloroquina”, ela é apontada como uma das principais integrantes do “gabinete paralelo” e teve um papel central na ação desastrada e irresponsável do governo federal no colapso de Manaus no começo deste ano. Em janeiro, morreram no Amazonas mais de 3 500 pessoas, parte delas por asfixia. No momento em que a cidade precisava desesperadamente de novos leitos e estoques de oxigênio para os pacientes de Covid-19, Mayra Pinheiro liderou uma espécie de força-tarefa para cobrar das autoridades locais a adoção do chamado tratamento precoce. O Ministério Público Federal do Amazonas abriu um processo, que corre em sigilo, para apurar as responsabilidades. No inquérito obtido por VEJA, os procuradores chegaram à conclusão de que o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, Mayra Pinheiro e o secretário de Ciência e Tecnologia, Hélio Angotti, foram omissos ao “não tomar providências administrativas para verificar se havia o devido dimensionamento do consumo e demanda de oxigênio” e incorrerem no crime de improbidade administrativa, que prevê a perda do cargo público e pagamento de multa. Mayra ainda foi acusada de “desviar-se da necessária atenção de leitos e insumos comprovadamente necessários” para “promover” visitas a hospitais com o intuito de “convencer profissionais da saúde a ministrar medicamentos com eficácia questionada” e, assim, “agir em descompasso com a tecnicidade” do seu cargo.
Foi ela a escalada por Pazuello para ir a Manaus fazer um diagnóstico do sistema de saúde local no início de 2021, quando já havia sinais e alertas a respeito da possibilidade de colapso e falta de insumos nos hospitais. Em seu depoimento ao procurador Gladston Viana, Mayra relatou que presenciou pacientes morrendo nos corredores e familiares desesperados implorando por ajuda: “A palavra que mais define o que eu vivenciei foi o caos”. Em sua visão, no entanto, o monitoramento dos insumos cabia única e exclusivamente à gestão estadual. A avaliação dela (e que predominava dentro do Ministério da Saúde) era de que a situação em Manaus havia saído do controle porque os médicos não estavam receitando o combo de remédios, que incluía as drogas hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina, entre outros fatores. Em ofício do dia 7 de janeiro encaminhado à Secretaria Municipal de Saúde de Manaus, ela chegou a escrever que era “inadmissível” a não adoção desses medicamentos antivirais “orientados pelo Ministério da Saúde”. O papel dela na ocasião acabou sendo confirmado pelo próprio Pazuello em depoimento à CPI na última quarta, 19. Segundo o ex-ministro, Mayra foi ainda a responsável pelo aplicativo TrateCov, que receitava cloroquina e antibiótico até para bebês com náusea e diarreia. O negócio foi lançado em meio à crise de Manaus e depois retirado do ar por força do escândalo que provocou.
Ex-tucana (apadrinhada pelo senador Tasso Jereissati, fracassou na tentativa de emplacar como deputada federal pelo Ceará em 2014 e senadora em 2018), abraçou com fervor o bolsonarismo nos últimos anos. Autointitulando-se “médica ativista”, Mayra chegou ao cargo no Ministério da Saúde após fazer protestos contra os médicos cubanos contratados no governo Dilma e participar ativamente da campanha de Bolsonaro em 2018 no Nordeste — e continua firme e forte no posto até hoje, mesmo após as três trocas ministeriais.
Sem cargos no governo, mas exercendo forte influência na órbita da política do tratamento precoce, os dois membros mais graduados do “gabinete paralelo” são o empresário Carlos Wizard e a médica Nise Yamaguchi. Para o bilionário fundador da franquia de escola de inglês que leva seu sobrenome e hoje sócio de redes como Pizza Hut e KFC no Brasil, “não há polêmica quanto à efetividade da cloroquina”. Amigo próximo de Pazuello, Wizard chegou a participar de reuniões privadas com gestores estaduais e foi nomeado como “conselheiro pro bono” do Ministério da Saúde no meio do ano passado. Acabou afastado das funções após propalar que os governadores estavam inflando os números de mortes por Covid para conseguir mais orçamento — teoria conspiratória comungada por Bolsonaro até hoje. Embora negue, Yamaguchi teria participado de reuniões em que se discutiu a mudança da bula da cloroquina por meio de um decreto presidencial. “Realmente existe uma contaminação ideológica num nível de paranoia. Eles passam a acreditar naquilo e persistem mesmo contra todas as evidências”, afirma o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), autor dos pedidos de convocação e quebra de sigilo de Carlos Wizard e Carlos Bolsonaro na CPI da Pandemia.
Quem de dentro do Planalto organizou o grupo pró-cloroquina comandado por Wizard foi o ex-assessor especial da Presidência Arthur Weintraub, irmão do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub. A partir do início da pandemia, Arthur começou a abastecer o presidente com informações e pesquisas traduzidas sobre o medicamento. Na sua visão ensandecida, o uso da droga vai contra a “ideia globalista” de promover lockdowns. Mesmo fora do Palácio desde setembro de 2020, Arthur continua próximo ao deputado Eduardo e ao vereador Carlos Bolsonaro, que também exercem um papel relevante dentro do “gabinete paralelo”. Como o presidente não confia em ninguém, de assessores a ministros, ele costuma recorrer aos filhos para tomar qualquer tipo de decisão. Na transição do governo, o Zero Três se aproximou do grupo de médicos bolsonaristas e, no ano passado, atuou para barrar a ida do embaixador chinês ao Planalto para discutir a chegada de insumos hospitalares. Já Carlos, o Zero Dois, atua como uma espécie de “olheiro”, que entra de forma discreta e calada nas reuniões palacianas, incluindo a negociação das vacinas da Pfizer.
Apesar da insistência de Bolsonaro e de seu seguidores, os argumentos dos cloroquiners vem caindo por terra ao longo dos últimos meses. A FDA, agência de vigilância de saúde americana, que havia autorizado o uso preliminar do remédio no início de 2020, passou a fazer advertências sobre a prescrição. A OMS fez “forte” recomendação contra o remédio e concluiu que ele não tem efeito significativo e pode causar reação adversa. O próprio Donald Trump passou a ignorar o medicamento e se concentrar mais nas vacinas — que ele, inclusive, tomou escondido antes de deixar a Casa Branca. Bolsonaro, por sua vez, que se jactou de tomar hidroxicloroquina quando esteve infectado pelo vírus, ainda não se imunizou. Na segunda 17, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias do SUS (Conitec) contraindicou a droga contra a Covid-19. O documento foi elaborado por uma junta de especialistas (este, sim, um conselho técnico e oficial) a pedido do Ministério da Saúde, a quem agora cabe validá-lo ou não. Será uma nova prova de fogo da ciência contra a fé no curandeirismo professada pelo influente “gabinete paralelo”.
Publicado em VEJA de 26 de maio de 2021, edição nº 2739