O legado da entrada do Brasil na II Guerra Mundial, há 80 anos
Foram muitas conquistas e perdas na política, na economia, na cultura e até no aprimoramento militar
As efemérides têm utilidade — iluminam o passado de modo a entender o presente e abrir caminhos para o futuro. Os oitenta anos da entrada do Brasil na II Guerra Mundial, em agosto de 1942, ajudam a pavimentar a trajetória histórica do país em suas relações internacionais, a postura das Forças Armadas e, inclusive, a nação que somos hoje. Cabe recordar: o submarino alemão U-507, comandado pelo nazista Harro Schacht, torpedeou cinco navios brasileiros, que foram a pique nas águas do Nordeste, entre os estados de Sergipe e Bahia. Os ataques mataram mais de 600 pessoas, entre tripulantes e passageiros, até mulheres e crianças. Houve comoção instantânea. Pela dimensão e covardia, o evento galvanizou a opinião pública e alimentou grande manifestação no Rio de Janeiro, a capital federal na época. Pressionado, o então presidente Getúlio Vargas, que parecia paralisado e alheio, enfim declarou guerra à Alemanha e à Itália.
O decreto de estado de guerra tinha efeito imediato. Havia, porém, outras providências a ser tomadas antes da entrada no teatro de operações. A Força Expedicionária Brasileira (FEB), grupamento militar que representaria o país na Europa, só seria criada um ano depois, em agosto de 1943. Como símbolo, adotou-se a imagem de uma cobra fumando cachimbo, em resposta aos críticos que desdenhavam da capacidade brasileira de participar de um conflito armado — isso só aconteceria se uma cobra fumasse, diziam eles. O ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, destacou o general Mascarenhas de Morais para o comando, embora as tropas nacionais fossem atuar sob as ordens dos exércitos aliados. Os primeiros dos mais de 25 000 pracinhas — como eram chamados os soldados de baixa patente — destacados para a missão começaram a ser enviados para a Itália em julho de 1944.
O primeiro escalão da FEB desembarcou em Nápoles e seguiu em direção ao norte, para as regiões montanhosas da Toscana. As tropas permaneceriam por ali entre o fim de 1944 e o início de 1945. A principal batalha travada foi a de Monte Castelo (veja no mapa acima), marco no fim da guerra que praticamente selou o destino alemão. Como saldo, houve mais de 440 mortos na ação, taxa de letalidade baixa dado o treinamento precário recebido pelos soldados brasileiros e as situações de combate enfrentadas nas montanhas, debaixo de temperaturas muito frias nos meses de inverno. Dos cinco escalões enviados, só o primeiro recebeu treinamento adequado dos americanos antes de entrar em combate. Os restantes foram engajados diretamente. “É comum na literatura sobre a FEB desdenharem dos soldados brasileiros”, diz Francisco César Ferraz, professor de história da Universidade Estadual de Londrina e autor de dois livros sobre o assunto. “Mas eles tiveram de combater em situações para as quais não estavam adequadamente preparados.”
Para além do tardio — e merecido — reconhecimento da resiliência das tropas brasileiras em combate, a participação da FEB na II Guerra deixou legados na política, na economia, na cultura e até no aprimoramento das tropas armadas do Brasil. Antes influenciado em todos esses campos por países europeus como França e Alemanha, o país passou a se aproximar dos Estados Unidos. A chamada “política de boa vizinhança”, usada para ganhar influência sobre o bloco continental, foi atalho para fortalecer o bloqueio aos países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão).
A aliança Brasil-EUA proporcionou a revitalização das Forças Armadas brasileiras, com investimentos por parte dos americanos e trocas de conhecimento e tecnologia, em movimento que ainda se mantém. Na economia, significou a aceleração da industrialização. Na política, acabou por incentivar a participação militar na vida pública — com resultados muitas vezes desastrosos, como no Golpe de 1964. Um dos maiores impactos se fez sentir na cultura nacional. “Houve um forte processo de americanização, diz o professor Ferraz. “Deveria ser uma via de mão dupla: nós ofereceríamos o que tínhamos de melhor e os americanos ofereceriam o que tinham de melhor. No fim, prevaleceu uma outra fórmula: eles trazem a cultura e a sofisticação, e a gente oferece o exotismo. Isso perdura até hoje”. Nunca é tarde, no entanto, para mudar.
Publicado em VEJA de 24 de agosto de 2022, edição nº 2803