O alerta das redes chega ao Congresso: o urgente debate sobre ameaças digitais à infância
Vídeo do youtuber Felca sobre a exploração sexual de crianças viraliza, mobiliza apoiadores da esquerda à direita e cria um tsunâmi legislativo

O paranaense Felipe Bressanim Pereira, 27 anos, já era bastante popular no ambiente digital. Felca, como ele é mais conhecido, havia publicado mais de 100 vídeos desde 2017 e amealhado quase 6 milhões de inscritos em seu canal do YouTube, basicamente falando de celebridades e acontecimentos do mundo da internet. Mas nada se compara em termos de alcance e repercussão ao que ocorreu no último dia 6, quando ele colocou o dedo em uma ferida que há tempos pedia para ser tratada com atenção. Em um vídeo de cinquenta minutos, longo para os padrões digitais, Felca explanou, de forma didática e incisiva, como crianças são usadas para gerar conteúdos que alimentam um universo movido pela pedofilia — e como isso não poderia acontecer sem a leniência dos pais, a ganância criminosa dos produtores e, principalmente, a dinâmica que sustenta o ecossistema lucrativo das redes sociais. O alerta foi visto por mais de 38 milhões de pessoas em uma semana, incendiou as redes sociais, mobilizou gente da esquerda à direita e foi bater forte no Congresso, onde atropelou pautas como anistia e foro privilegiado, indo parar no topo das prioridades.
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O alerta sobre o assunto veio na onda da escalada do problema. A Polícia Federal tem 2 359 inquéritos em andamento sobre pornografia infantil e aliciamento de menores. O Ministério dos Direitos Humanos registrou 5 800 denúncias apenas neste ano — número que teve um salto depois do alerta do youtuber (veja o quadro). A ONG SaferNet, que há tempos monitora a questão, recebeu 1 651 novos relatos em apenas uma semana, mostrando como o vídeo serviu para reforçar junto à sociedade a urgência do combate a esse crime, cuja incidência não para de crescer, de forma preocupante. Desde que a PF criou, em 2023, uma área especializada nesses casos, foram realizadas 409 operações com foco na repressão à produção, armazenamento e compartilhamento de material de abuso sexual infantil. Na terça-feira 12, a Operação Carcará, da PF, cumpriu mandados judiciais nas cidades de Teresina e Altos, no Piauí, onde encontraram vários arquivos com imagens e vídeos de crianças e adolescentes em cenas de sexo.
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A onda de indignação que tomou conta do Congresso a partir do vídeo de Felca denunciando o problema resultou em uma fúria legislativa sem precedentes. Em menos de três dias, já haviam sido protocolados 52 projetos de lei para proteger as crianças na internet. Deputados do PL, PP, Republicanos e União Brasil protocolaram, juntos, 25 propostas no período. Parlamentares de centro (PSD, PSB, MDB e PDT), dezoito, enquanto PT e PSOL são autores de sete proposições. O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), ao sentir o alcance do vídeo de Felca, foi, no domingo 10, ao X para elogiar o influenciador. “Vamos pautar e enfrentar essa discussão. Obrigado, Felca. Conte com a Câmara para avançar na defesa das crianças”, postou. Um dia depois, determinou a criação de um grupo de trabalho para analisar e formatar as mais de sessenta propostas que estão na Casa e conseguiu junto ao Colégio de Líderes priorizar o tema. A proatividade teve relação direta com a necessidade que Motta tinha de sair da situação difícil em que havia sido colocado pela direita bolsonarista, que chegou a liderar um motim para forçar a votação de anistia aos acusados de tentativa de golpe. “Ele estava relativamente encurralado e desmoralizado”, avalia Mayra Goulart, doutora em ciência política da UFRJ.
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Estabelecida a prioridade na pauta, o desafio do Congresso daqui para a frente será conciliar o alto volume de propostas de combate ao problema. Embora existam muitos pontos em comum nos projetos apresentados, há visões diferentes sobre as medidas que devem ser adotadas. Para os parlamentares da direita, a saída é intensificar a criminalização, com aumento do tempo de condenação por delitos que já existem e criação de outros tipos penais. Uma das propostas, de Carlos Jordy (PL-RJ), sugere que crimes de produção, armazenamento e divulgação de pornografia infantil e adolescente, já previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, sejam enquadrados na Lei de Crimes Hediondos, tornando-se inafiançáveis e dificultando a progressão de regime — a pena máxima prevista pelo ECA para pornografia infantil, sem contar agravantes, é de oito anos. Na outra ponta, a maioria dos projetos de esquerda e centro-esquerda mira as plataformas e a monetização dos conteúdos, como as propostas de Sâmia Bomfim (PSOL-SP) e Tabata Amaral (PSB-SP). Elas preveem que seja proibida a remuneração de quaisquer conteúdos que exponham a imagem de crianças e adolescentes. Outros projetos visam às companhias que controlam as redes sociais, prevendo que elas sejam punidas pela distribuição e disseminação de conteúdos do tipo. Não será tão fácil chegar a um consenso nesses pontos. “Mesmo que pareça que há uma convergência no tocante à preocupação com as crianças, os desdobramentos são distintos”, observa Mayra Goulart.

Antes do frenesi provocado pelo vídeo de Felca, já havia projetos a respeito do assunto tramitando no Congresso, mas seguindo em avanço lento — ritmo que deve mudar daqui para a frente. Um dos mais adiantados é o do senador Alessandro Vieira (MDB-SE), que deve ter sua tramitação de urgência discutida nos próximos dias. Aprovado em dezembro de 2024 no Senado, o PL nº 2628/2022, agora na Câmara, propõe mais obrigações às redes sociais no caso de crianças e adolescentes, obrigando-as a verificar a idade dos usuários e a criar ferramentas para que os responsáveis legais fiscalizem esse uso. Há uma previsão de aplicação de multa, mas o objetivo principal é fazer com que as plataformas abram parte de sua caixa-preta de informações e comuniquem, às autoridades brasileiras, as denúncias que recebem, os canais disponíveis para isso e o que efetivamente fizeram para lidar com essas situações. Hoje, as big techs apresentam publicamente alguns números, mas não há nenhum protocolo nem padrão previstos em lei para os seus sistemas de moderação de conteúdo. “O ponto mais importante é trazer as empresas para o centro de responsabilidade”, diz Vieira.

Outra das principais dificuldades de combate ao problema é a definição sobre o que seriam esses conteúdos mais sensíveis. Diferentemente da pornografia infantil, uma criança usando roupas curtas e dançando não é considerado crime. Assim, as redes sociais não são obrigadas a reprimir ou retirar determinadas peças do ar e ainda podem levar seus algoritmos a sugeri-las a usuários que costumam consumir materiais semelhantes, incluindo-se aí os pedófilos de plantão e as redes que reúnem esses criminosos. “As plataformas fazem vista grossa para conteúdos problemáticos que elas têm condição de detectar, desmonetizar e tirar do ar, mas não o fazem porque não são obrigadas”, afirma Débora Salles, coordenadora do NetLab UFRJ. Em junho, o STF avançou na regulação ao tornar as big techs responsáveis por pornografia infantil e sexualização de menores, mas a norma se restringe aos casos flagrantemente ilegais e não abrange práticas mais subjetivas, como a “adultização”, termo usado para definir a superexposição de uma criança na internet. “É necessária uma legislação mais explícita”, defende Alexandre Pacheco, doutor em política científica e tecnológica e professor da FGV.
As iniciativas de regulação não se restringem às fronteiras nacionais. Nos Estados Unidos, está na mesa do Congresso a Lei de Segurança On-line de Crianças (Kosa), que amplia a responsabilização das big techs por danos físicos, psicológicos e sexuais causados a menores de idade. Uma audiência no Senado, em 2024, colocou Mark Zuckerberg (dono da Meta), Shou Zi Chew (CEO do TikTok), Linda Yaccarino (ex-chefe do X) e Jason Citron (ex-CEO do Discord) no banco das testemunhas. Em outubro de 2023, o Reino Unido aprovou a Lei de Segurança On-line, que estabelece rigorosos critérios para verificação de idade e prevê multa mínima de 18 milhões de libras (132 milhões de reais) a plataformas relapsas no combate à pornografia infantil e sexualização de menores. Desde fevereiro de 2024, vigora na União Europeia a Lei de Serviços Digitais (DSA), que impõe rígidas exigências sobre a privacidade de crianças e adolescentes e restringe anúncios para menores. “Os filtros que um adolescente usa em fotos, as músicas que ouve e até a ‘estética’ de seu perfil podem ser coletados, rotulados e transformados em perfis de consumo”, diz Rafael Zanatta, diretor da Data Privacy Brasil e membro da Coalizão Direitos na Rede.

Catalisador no país de uma grande discussão sobre esse tema, o vídeo de Felca também se espalhou como um rastilho de pólvora porque despertou em muitos pais um alerta para enxergar situações desse tipo. O caso de Hytalo Santos, influenciador denunciado no vídeo, é exemplar. Nascido em Cajazeiras, no interior da Paraíba, ele fez fama com produção de conteúdos envolvendo crianças e adolescentes, simbolicamente “adotados” por ele. Apenas em seu perfil do Instagram, ele contava com 18 milhões de seguidores. A presença de meninas usando roupas curtas, fazendo danças sensuais, trocando carinhos e com bebidas alcoólicas ao lado se tornou uma espécie de marca registrada. Uma delas, identificada como Kamylinha, foi exposta dos 12 aos 17 anos de idade e virou uma “celebridade” no perfil de Hytalo, que tinha até uma espécie de reality show em que menores eram expostos. O influencer não fazia questão de esconder o quanto enriquecia. Em seu casamento com o cantor Euro, no fim de 2023, ele enviou um celular iPhone 15 Pro Max para cada um dos convidados, mesmo para quem não compareceu.
Na Justiça, Hytalo tem vários enroscos, entre eles um processo contra uma influenciadora que o chamou de “P. Diddy brasileiro”, em referência ao rapper americano Sean Combs, preso por crimes sexuais, cometidos em festas com outras celebridades. Hytalo é alvo também de duas investigações na Paraíba relacionadas à sexualização de adolescentes e crianças nas suas redes. A Justiça mandou as plataformas apagarem de vez seus perfis, afastou as crianças e adolescentes que conviviam com ele e fez buscas na sua residência nesta semana. Um dos argumentos que Hytalo sempre usou é o de que os responsáveis legais pelos menores de idade autorizaram a presença deles. Muitos desses responsáveis receberam presentes, como celulares e pagamentos de aluguéis e de mensalidades escolares, o que pode caracterizar “moeda de troca” para liberarem a exposição dos filhos.

A maneira como os pais se submetiam (ou foram cooptados em razão dos ganhos materiais) a um esquema de exploração de seus filhos, a maneira criminosa como eles eram expostos nos conteúdos e o fato de o perfil de Hytalo ter atraído o interesse de 18 milhões de pessoas dizem muita coisa sobre o tamanho do problema. Cabe ao Congresso, autoridades em geral, especialistas, pais e plataformas darem um basta a essa roda criminosa.
Publicado em VEJA de 15 de agosto de 2025, edição nº 2957