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Marcelo Odebrecht: “Estou vivendo o inferno”

Dois anos depois de deixar a cadeia, o ex-bilionário responsável pela mais importante delação da Lava-Jato está recluso e com dificuldades financeiras

Por Thiago Bronzatto Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 15h47 - Publicado em 7 ago 2020, 06h00

A cena ao lado, captada na tarde da última terça-feira num bairro da Zona Sul de São Paulo, é rara. Dirigindo o próprio carro, um Carens prata, ano 2011, o empreiteiro Marcelo Odebrecht estaciona em frente a uma farmácia, entra no estabelecimento, compra alguns itens de higiene pessoal e retorna cinco minutos depois. A máscara, claro, dificulta o reconhecimento, mas é bem provável que, mesmo sem ela, o delator mais importante da Operação Lava-Jato passaria despercebido. A discrição sempre foi uma característica do empreiteiro e uma regra no conglomerado comandado pela família há mais de sete décadas. Foi seguindo à risca essa orientação que Marcelo e o pai, Emílio, transformaram a construtora Odebrecht em uma multinacional com atuação em treze países e exportadora de um modelo de negócio que levou a dupla primeiro à seleta lista dos homens mais ricos do mundo, depois a protagonistas do maior escândalo de corrupção da história e, por último, às portas da cadeia.

Emílio Odebrecht
(Caio Guatelli/Folhapress/.)

O PAI ANTI-HERÓI
O empreiteiro diz que seu pai, Emílio Odebrecht, o patriarca da corporação, é um “psicopata” capaz de destruir a própria família, até mesmo o filho e as netas, apenas para se proteger. Na guerra entre os dois, Marcelo foi demitido, teve os bens congelados, os pagamentos suspensos e sofre uma enxurrada de ações na Justiça

Ao sair da farmácia, Marcelo nem sequer olha para os lados. Em tese, deveria. As revelações que ele fez levaram e ainda podem levar para o xilindró deputados, senadores, ex-governadores e ex-presidentes da República — boa parte da elite política nacional, gente poderosa. No exterior, as confissões do empresário e dos executivos da construtora provocaram revoltas populares, renúncias e até um suicídio. Esse tsunami, porém, não gera um pingo de preocupação ao empreiteiro, que se impôs um regime de reclusão domiciliar desde que foi autorizado, no ano passado, a cumprir sua pena em regime semiaberto. Marcelo pode trabalhar durante o dia e voltar para casa à noite. Graças aos termos do acordo de delação assinado com a Justiça, ele continua com uma fortuna estimada em mais de 140 milhões de reais, sem considerar a sua participação acionária na Odebrecht, e morando em sua antiga e luxuosa mansão — uma situação confortável mesmo para um ex-bilionário. O empreiteiro, ainda assim, confidenciou recentemente a um amigo que, aos 51 anos de idade, atravessa o pior momento de sua vida.

JAIR-BOLSONARO-POSSE-2019-3340.JPG
(Renato Costa/FramePhoto/.)

A VITÓRIA DA LAVA-JATO
Acostumado a lidar com políticos graúdos, Marcelo hoje observa Brasília a distância. Em sua avaliação, a eleição do presidente Bolsonaro foi produto da Lava-Jato, assim como a Operação Mãos Limpas, que também desmantelou um esquema de corrupção na Itália, foi responsável pela ascensão do ex-premiê Silvio Berlusconi

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“Preferiria ter ficado preso em Curitiba mais dois anos a passar o que estou passando nos últimos seis meses”, disse ele, que foi demitido da construtora, teve o salário cortado, os bens bloqueados, é alvo de uma enxurrada de processos e, em razão de tudo isso, conta que tem passado por dificuldades financeiras. “Estou vivendo o inferno”, relatou. Os problemas atuais daquele que já foi considerado “o príncipe das empreiteiras” derivam de uma disputa que ele trava com o pai. Os dois comandaram a companhia durante oito anos, de 2008 a 2015, e, por sete anos consecutivos, ocuparam juntos uma posição de destaque na lista de bilionários da revista Forbes. A Lava-Jato, além de levar a empresa à lona, empurrou pai e filho para lados opostos. Eles não se falam há mais de dois anos. Preso em 2015, Marcelo sempre desconfiou que havia sido escolhido para o papel de bode expiatório. Com o apoio do pai, tornou-se um delator. Em troca de benefícios, comprometeu-se a revelar os detalhes da engrenagem criminosa que funcionava dentro da Odebrecht, que envolvia os principais executivos da corporação e figurões da República, mas considera que pagou sozinho pelos malfeitos da empresa, enquanto Emílio, o artífice de todo o esquema de corrupção, permaneceu solto, cuidando dos negócios como se nada tivesse acontecido e sem mover uma palha para tentar ajudá-lo.

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(Cristiano Mariz/.)

O AUTORITÁRIO
Quando perguntam a Marcelo Odebrecht a opinião dele sobre a possível candidatura de Sergio Moro à Presidência da República, o empresário torce o nariz e justifica que isso seria muito perigoso para a democracia. Segundo ele, o ex-juiz e ex-ministro da Justiça do governo Bolsonaro tem instintos arbitrários e traços de personalidade de um ditador

O acordo livrou Emílio da cadeia. Marcelo, ao contrário, ficou preso em regime fechado por dois anos e meio. Nesse período, descobriu que o pai estava dilapidando o patrimônio da companhia em benefício pessoal — e o questionou sobre isso. Ao deixar a penitenciária, em dezembro de 2017, disparou acusações contra Emílio e outros executivos da Odebrecht, incluindo o seu cunhado, que acabou preso. Foi a gota d’água. Em retaliação, a empreiteira, comandada por um aliado de Emílio, iniciou a investida contra ele nos tribunais, acusando-o de tirar proveito financeiro do acordo de delação. A empresa alega ter sido chantageada. Por essa razão, pediu o bloqueio de bens de Marcelo, o congelamento de aplicações bancárias dele, da esposa e das filhas e o ressarcimento de todos os pagamentos que a Odebrecht fez depois de assinado o acordo de delação. A construtora quer que o empresário devolva quase 200 milhões de reais, dinheiro que ele recebeu a título de indenização e bônus. Por isso, a cena da farmácia é tão rara. O empreiteiro se impôs um regime de reclusão, passa o dia inteiro em casa lendo e relendo as ações judiciais, traçando estratégias, buscando novas provas, especialmente para rebater as acusações do pai, a quem, em uma conversa recente, chamou de “psicopata”.

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Nessa mesma conversa, Marcelo contou a um amigo que sua filha mais velha sucumbiu à depressão quando soube que Emílio pediu o bloqueio das contas de toda a família e ainda ordenou à empresa que cortasse o plano de saúde do seu sogro, de 76 anos, que sofre de Alzheimer. Isso em plena pandemia. O empreiteiro chegou a reproduzir uma imagem chocante que teria sido usada pelo médico da filha para ilustrar o estado psicológico em que ele se encontra. “Qual o interesse do meu pai em fazer tudo isso com a gente?”, perguntou. E ele mesmo respondeu: “É frear a minha colaboração, que está expondo ele e os capachos dele”. Em março, quando soube que a Odebrecht havia conseguido bloquear os bens de sua família na Justiça, Marcelo decidiu ligar para o pai. Como Emílio não usa e-mail nem celular, o empresário entrou em contato com a sua mãe, Regina. Tentou, sem sucesso, uma reaproximação. “A briga com meu pai envolve me calar. Espero que a Justiça veja isso. Estou lutando. Mas vai chegar a um ponto que não sei o que vou fazer. Não aguento mais”, desabafou Marcelo.

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(./Reprodução)

O DETALHE QUE PODE AJUDAR LULA
Para o empreiteiro, Lula será absolvido da acusação de corrupção no caso do sítio de Atibaia. Em sua delação, Marcelo contou que a empresa deu dinheiro para a reforma da propriedade do ex-presidente, mas que não sabe os detalhes do que havia sido combinado entre Lula e o pai. Emílio nunca confirmou se havia alguma contrapartida no negócio. Estaria mentindo ou omitindo essa informação?

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Calar, para o empreiteiro, significa impedir que ele faça novas revelações que envolvam Emílio e seus funcionários de confiança, mentir ou omitir assuntos de interesse do pai, o que poderia, em último grau, provocar até mesmo a anulação do acordo de colaboração. Um caso que pode acabar prejudicado por esse embate entre pai e filho envolve Lula. Em sua delação, Marcelo confirmou que a Odebrecht foi uma das patrocinadoras da reforma do famoso sítio de Atibaia. O ex-­presidente foi condenado nesse processo a dezessete anos de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. O empreiteiro acha que a sentença será anulada nas instâncias superiores da Justiça. Isso porque, segundo ele, a única pessoa que pode confirmar se houve ou não alguma contrapartida em troca da reforma é seu pai, que era amigo do ex-presidente, deu o sinal verde para liberar o dinheiro, mas, em seus depoimentos, nunca foi muito claro sobre esse assunto. A defesa de Lula está usando a disputa judicial entre os Odebrecht para tentar demonstrar que o ex-presidente foi vítima de uma armação.

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(./AFP)

A CULTURA DA CAIXINHA
Nas últimas décadas, a Odebrecht esteve próxima de todos os governos. Em maior ou menor escala, a empresa fez “pagamentos políticos” (caixa dois e propina) em todos eles. Michel Temer, apontado como beneficiário de 10 milhões de reais, foi, segundo o delator, o melhor dos últimos presidentes

Embora tenha se tornado o delator mais importante da Lava-Jato, Marcelo não poupa críticas à operação. Por diversas vezes, ele afirmou que tanto a força-tarefa do Ministério Público Federal como o ex-juiz Sergio Moro agiram como uma “arbi­tra­rie­dade monumental”. O empresário costuma citar um episódio ocorrido durante as negociações do seu acordo como exemplo do nível de alguns investigadores. Certa vez, um procurador de Brasília lhe pediu que contasse todos os detalhes do esquema de corrupção como se ele fosse o “diretor de um filme pornográfico”. Outros insistiam em confirmar “teses absurdas”, como a de que teria havido superfaturamento nos contratos das empreiteiras com a Petrobras, o que Marcelo jura que nunca aconteceu. Para o empreiteiro, Sergio Moro tem traços de ditador e a Lava-Jato acabou favorecendo a eleição de Jair Bolsonaro, assim como a Operação Mãos Limpas na Itália facilitou a ascensão do ex-­premiê Silvio Berlusconi. Michel Temer, segundo ele, foi o melhor dos últimos três presidentes do Brasil. Vale lembrar que, na delação dos executivos da Odebrecht, Temer foi citado como beneficiário de 10 milhões de reais em propina. Os governos mais corruptos, de acordo ele, foram os de José Sarney e Fernando Collor.

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Embora ainda acompanhe com atenção a política, Marcelo hoje concentra sua energia e consome seu tempo traçando estratégias para vencer a guerra contra o pai. Na terça-feira, três horas depois de ter saído da farmácia, ele recebeu a notícia de que a Justiça de São Paulo havia desbloqueado os bens da família. Foi a primeira vitória nos tribunais, mas ainda sem motivo para comemoração. O empreiteiro sabe que a empresa vai recorrer e a pendenga ainda vai se arrastar por muito tempo. Ele calcula que a Odebrecht já tenha gasto nessa disputa mais de 50 milhões de reais apenas com honorários e pareceres de juristas renomados. Sem o mesmo poder de fogo, diz que os seus advogados estão trabalhando sem receber. Por ora, garante que não tem dinheiro. “Meu pai quer me asfixiar moral e financeiramente para que eu chegue ao ponto de mentir”, resume. Certamente, Marcelo e Emílio não passarão juntos este Dia dos Pais.

Publicado em VEJA de 12 de agosto de 2020, edição nº 2699

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