Gol contra: cresce a ação de criminosos em sites de apostas no Brasil
Eles buscam manipular os resultados e se aproveitar do sucesso de um negócio que movimenta 15 bilhões de reais e ainda não foi regulamentado
O jogador que chuta contra o próprio gol. Um zagueiro que coloca uma bola fácil para escanteio. Uma diferença de placar muito alta, construída de forma surpreendente. Um atleta que dá um soco no colega de time durante a partida. Esses e outros acontecimentos estranhos no futebol do Brasil são observados hoje com lupa por um time de “caçadores de fraudes”. Com a ajuda de um sistema de monitoramento universal de apostas esportivas, eles são capazes de descobrir movimentações incomuns ocorridas durante as pelejas. Detectado o volume de transações suspeitas e convencidos de que os lances nos campos são dignos de desconfiança, essas empresas enviam um relatório às federações responsáveis pelas partidas, que, por sua vez, pedem a abertura de uma investigação policial.
Nos últimos tempos, o trabalho desses caçadores de fraudes tem aumentado consideravelmente por aqui. Até a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), principal entidade do país, foi obrigada a recorrer a um serviço do tipo, contratando a Sportradar, especializada nesse monitoramento. Trata-se do efeito colateral do sucesso das apostas esportivas. Segundo empresas do mercado, o movimento saltou de 2 bilhões de reais em 2018 para 15 bilhões em 2022. Para se ter uma ideia da goleada, no auge da Loteria Esportiva, que era uma coqueluche no país na década de 70, a arrecadação anual era de 1,5 bilhão de reais (em valores atualizados). A modalidade sofreu um baque do qual nunca mais se recuperou quando a revista PLACAR denunciou, em 1982, um esquema de fraudes nas partidas.
As atuais apostas on-line correm o mesmo risco caso não seja feito com urgência um trabalho de depuração. A presença dos sites é cada dia mais visível na rotina e na vida de quem gosta de futebol — estão nas placas nos estádios e nas camisas de todos os quarenta clubes de futebol das Séries A e B do Brasileiro. A questão é que criminosos se aproveitam dessa força para tentar melar o jogo — e ganhar dinheiro com isso. Só em São Paulo, dezoito casos estão sendo investigados. Em uma delas, um zagueiro do Batatais deu um soco no colega de time por ter feito o gol de empate contra o Taquaritinga, em maio deste ano, na quarta divisão paulista. O comportamento dos jogadores e a movimentação peculiar em sites de apostas levaram a Stats Perform, que faz o trabalho de monitoramento para a Federação Paulista de Futebol, a desconfiar. O caso virou inquérito policial. Na sequência, treinador e jogadores rescindiram o contrato. Em outro episódio recente, uma goleira do Red Bull Bragantino denunciou o preparador de goleiras Fabrício de Paula, do Santos, que teria oferecido 10 000 reais para ela tomar cinco gols em uma partida do Brasileiro em junho de 2022. Fabrício foi demitido e é investigado pela polícia. Outras mutretas são tão escandalosas que não precisam de empresa de monitoramento. Nesta semana, o jogador Júlio Campos foi demitido pelo Atlético Amazonense após marcar um gol contra o time de forma claramente intencional, na Série B estadual.
A proliferação de suspeitas de manipulação de resultados acendeu o sinal amarelo em Brasília. Todos os clubes foram notificados pelo Ministério da Justiça para apresentar os seus contratos de patrocínios com empresas do setor. Ainda que não tenha relação com suspeitas de fraudes, o governo desconfia que a atividade esteja sendo explorada sem autorização e sem mecanismo de controle, fiscalização ou prestação de contas. “Pelo volume de dinheiro e pelas possibilidades de apostar em lances específicos, como número de escanteios, a chance de esse tipo de crime aparecer é cada vez maior”, alerta o delegado Cesar Saad, da Delegacia de Repressão e Análise aos Delitos de Intolerância Esportiva, que investiga os casos em São Paulo.
A iniciativa do Ministério da Justiça talvez ajude a tirar da gaveta a regulamentação desse tipo de atividade — que pode trazer benefícios à economia e às finanças públicas do país. É consenso entre quem atua no setor que a falta de regras favorece a prática criminosa. A categoria de apostas de cota fixa (na qual o apostador sabe previamente quanto vai ganhar se acertar o palpite) foi criada por uma medida provisória do presidente Michel Temer em 2018, mas a sua regulamentação, que precisa ser feita em quatro anos, ainda não ocorreu. Por isso, os sites precisam utilizar um CNPJ de fora do país. O dinheiro apostado sai do Brasil, da mesma forma que vem do exterior o dinheiro pago aos apostadores — tudo sem passar pela Receita. “A regulamentação não zera as chances de manipulação, mas pode ajudar se o dinheiro arrecadado em impostos for usado para a criação de um sistema de troca de informações entre casas de apostas, federações e polícia”, diz Felippe Marchetti, doutor em integridade esportiva pela UFRGS.
O Brasil já deveria estar vacinado contra o jogo sujo, devido ao histórico do problema por aqui. Décadas depois da máfia da loteria denunciada por PLACAR, uma reportagem de VEJA em 2005, realizada pelo jornalista André Rizek, revelou a “máfia do apito”, o que levou à prisão do árbitro Edílson Pereira de Carvalho e à anulação de rodadas do Brasileirão. Agora, diante de um novo mercado, em franca expansão e movimentando bilhões de reais, é preciso mais do que nunca que haja uma regulamentação. Seria importante para manter a idoneidade de um esporte que é um dos símbolos do país no exterior e uma de suas maiores paixões nacionais.
Publicado em VEJA de 14 de setembro de 2022, edição nº 2806