Fome avança e deixa 33 milhões expostos a chaga que envergonha o Brasil
A combinação de pandemia, baixo crescimento econômico, inflação e mau uso de programas sociais provoca o avanço de uma tragédia
Na comunidade quilombola onde vive a dona de casa Janaína Fernandes, de 31 anos, em Cavalcante, Goiás, os mais jovens que, como ela, haviam se acostumado ao fogão a gás precisaram abandonar a comodidade por causa da alta no preço do botijão e voltar a cozinhar com lenha. As panelas também ficaram mais vazias e, sem recursos para comprar carne, a dieta costuma ser de arroz e feijão. “O dinheiro hoje só tem nome, mas não tem valor”, queixa-se o companheiro dela, Geovani Moreira, 36, que trabalha na roça e recebe 70 reais por dia. Desde a pandemia, as diárias escassearam e o Auxílio Brasil de 400 reais tem sido insuficiente. Com dois filhos, de 9 e 2 anos, a família mora no Vão do Moleque, local de dificílimo acesso a cerca de 60 quilômetros da cidade. No início do ano, as chuvas, as mais intensas em quatro décadas, destruíram as plantações, isolaram a área e submeteram os moradores a uma carência quase total.
Tristemente, no entanto, a comunidade goiana não é um exemplo isolado de carência. No Brasil de hoje, 33,1 milhões passam fome (insegurança alimentar grave), uma tragédia que atinge 15,5% das famílias, segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan), que coletou dados em 12 745 domicílios de novembro de 2021 a abril deste ano. É o pior número desde o início da série histórica, em 2004, quando a fome atingia 9,5% das casas. “O patamar é muito parecido com o dos anos 90, quando o número de famintos estimado por pesquisadores estava na casa dos 32 milhões”, diz o coordenador do estudo recente, Renato Maluf. O avanço mais expressivo foi na pandemia. No fim de 2020, havia 19,1 milhões de famintos, o que significa que desde então 14 milhões de brasileiros a mais passaram a vivenciar a penúria. Outros dados reforçam o momento especialmente dramático. Segundo o IBGE, o número de favelas no Brasil dobrou nos últimos dez anos. A crise provocou também uma explosão na quantidade de moradores de rua nas grandes cidades. Em São Paulo, estimativa mais recente revelou que há mais de 40 000 pessoas nessa situação.
Trata-se de um avanço preocupante de uma velha chaga nacional. Todas as pesquisas sobre insegurança alimentar mostram que o país avançou no enfrentamento desse mal de 2004 a 2014, mérito inegável dos governos petistas, embora a fome nunca tenha sido eliminada completamente, conforme alardeia o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele também “esquece” de citar que, a partir do segundo governo Dilma Rousseff (PT), os indicadores voltaram a piorar. Essa deterioração se acelerou entre 2018 e 2022, nos governos de Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL). Segundo Marcelo Neri, da FGV Social, 2014 foi o ponto de virada para uma série de indicadores sociais. “É o final de um ciclo, quando a renda dos 10% mais pobres cai 14%”, afirma. Já o ano de 2018 marcou uma “volta ao passado”, o que pode ser explicado pelo contexto de recessão (também herança petista), aumento do desemprego, alta da inflação e lenta retomada econômica.
O longo avanço em direção ao abismo social iniciado em 2014 ainda não se resolveu, explica o economista Luiz Carlos Bresser-Pereira, ex-ministro da Fazenda (governo José Sarney) e da Administração Federal e Reforma do Estado (gestão FHC). Para ele, uma das razões para o problema persistir ao longo da história é que o país cresce pouco desde 1980 e agora enfrenta problemas estruturais. “O Estado perdeu capacidade de fazer investimentos. Enquanto o Brasil crescia, investia cerca de 6% em relação ao PIB, hoje investe 1%”, diz. Ex-presidente do Banco Central, Affonso Celso Pastore também vê no baixo crescimento um dos motivos para o cenário dramático. “A renda per capita ainda está 8% abaixo de onde estava antes da recessão de 2014. Estamos andando de lado, não fizemos reformas. Depois veio a pandemia, que pegou o Brasil em um estado de pobreza e o agravou”, explica.
Irônica e tragicamente, 2014 foi o ano que marcou oficialmente a saída do Brasil do Mapa da Fome, publicação feita pela Organização das Nações Unidas (ONU) desde o início deste século com o objetivo de expor as nações onde mais de 5% da população não tem o que comer. Naquele ano, o país ficou abaixo da marca. Hoje, tecnicamente, retornou ao mapa. “O problema do Brasil está na sua desigualdade, é o segundo maior concentrador de renda do mundo, atrás apenas do Catar”, diz Daniel Balaban, diretor do Centro de Excelência contra a Fome do Programa Mundial de Alimentos (WFP). Na quarta 6, a ONU lançou um relatório que comprova o avanço da fome no país. Ele mostra que 7,3% dos brasileiros já ficaram sem comida por um dia ou mais entre 2019 e 2021.
Ao lado das questões econômicas, a volta da fome também está relacionada a mudanças nas políticas sociais que apresentaram bons resultados no ciclo de 2004 a 2014. Embora o Auxílio Brasil, que substituiu o Bolsa Família no fim do ano passado, tenha ampliado como nunca a distribuição de dinheiro às famílias mais pobres, outras iniciativas que também contribuíam para a segurança alimentar foram desidratadas nos últimos anos. As principais são o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), pelo qual o governo comprava a produção dos pequenos agricultores, e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), responsável pelas refeições de crianças da rede pública, que ficou desarticulado durante a pandemia, quando as escolas estiveram fechadas e sem fornecer merenda. Para os especialistas, o PNAE deveria ter garantido a entrega de alimentos aos jovens por meio de cartões de alimentação, por exemplo. “A fome não é uma mazela enfrentável com um único instrumento. De 2004 a 2014, houve a junção de vários, como a valorização do salário mínimo, Bolsa Família, reconhecimento dos direitos das domésticas — que teve impacto forte na base da pirâmide social —, programa de cisternas rurais no Nordeste”, diz Renato Maluf. A pesquisa conduzida por sua equipe sugere que uma das razões para que o Auxílio Brasil não tenha conseguido combater o avanço da insegurança alimentar é que boa parte das famílias usou o benefício para pagar dívidas, principalmente as contraídas na pandemia. Segundo o estudo, mesmo entre beneficiários do Auxílio Brasil, a fome atinge 21,5% dos domicílios, subindo para 44,3% entre os mais pobres, com renda per capita de até um quarto de salário mínimo (300 reais por pessoa).
Sem o Auxílio Brasil, a situação piora muito. Entre os lares com faixa de renda mais baixa que não recebem nenhum auxílio, a fome chega a 56,7%. É o caso da família Almeida, uma das mais vulneráveis da Favela do Cai Cai, em Guarapiranga, no extremo sul de São Paulo. Greice de Almeida, que tem 38 anos e oito filhos, foi demitida do ferro-velho onde trabalhava no início da pandemia. Passou a vender materiais de reciclagem ao antigo patrão, mas os preços do papelão e do ferro caíram. “Quando eu olho para minha cozinha e não tem nada para comer, eu choro muito, mas não falo para os meus filhos”, diz Greice, que trocou o gás de botijão por álcool em gel para cozinhar. Transformou uma das panelas em recipiente para o álcool, equilibrando sobre ela a grade do fogão e outra panela, com arroz ou feijão. O risco de acidente é alto. O escasso alimento vem de doações, mas mesmo a caridade perdeu fôlego. Em um ano, a quantidade de cestas básicas distribuídas pela Central Única das Favelas (Cufa) na localidade caiu de 300 para cinquenta por semana, porque depende da doação de empresas e voluntários — que também perderam renda e não ajudam mais com os valores de antes.
É o mesmo problema enfrentado pela comunidade de Monte Castelo, em Colombo, na região metropolitana de Curitiba — onde a faixa de pessoas em situação de pobreza, com renda per capita de até 497 reais mensais, aumentou de 14% para 18,5% entre 2019 e 2021. Elisângela Teixeira dos Santos, 36 anos, também demitida na pandemia, conseguiu sustentar as duas filhas com o Auxílio Emergencial e a doação de cestas pela Cufa. Mas essas doações vêm diminuindo de tamanho. Da última vez, havia só meio litro de óleo, em vez de 1 litro. Enquanto isso, o feijão foi reduzido pela metade. Os estudos recentes sobre insegurança alimentar mostram que famílias como as de Greice e Elisângela, chefiadas por mulheres, são as mais afetadas: seis em cada dez vivem algum nível do problema — 18,8% têm situação de fome.
Para quem sente o drama na pele, a maior vilã no cenário atual é a inflação dos alimentos. Apesar de o índice oficial (IPCA) assinalar que a inflação na pandemia (de abril de 2020 a maio de 2022) foi de 19,9%, um levantamento do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação mostra que os quarenta itens mais consumidos pelas famílias sofreram uma alta de 57,5%. Ao mesmo tempo, a pesquisa mais recente da FGV Social indica que, de 2019 para 2021, o número de pessoas com renda mensal per capita de até 497 reais aumentou em 9,6 milhões, quase um Portugal de novos pobres.
É o ponto máximo de miséria registrado pelas séries organizadas pela fundação desde 2012. O Maranhão, com 57,9% da população abaixo da linha da pobreza, é o estado com o pior desempenho. Ali vive gente como Alex Pereira da Silva, 36, ex-sushiman, pizzaiolo e churrasqueiro de São Paulo que se mudou para Caxias, a 365 quilômetros de São Luís, está desempregado e tira parte de seu sustento da venda de itens que recolhe do lixão, como roupas. Sua mulher, a maranhense Maria Francisca de Souza, 50, ganha 150 reais por mês como cuidadora de um idoso.
Por causa de histórias como essa, a economia é a principal preocupação de metade dos eleitores neste ano. Imagens chocantes de pessoas fazendo filas em busca de ossos descartados por supermercados viralizaram e viraram uma espécie de símbolo do momento. No fim do ano passado, uma pesquisa do Datafolha mostrou que 89% dos brasileiros avaliavam que aumentou a fome no país durante o governo Bolsonaro. Não à toa, o presidente aprovou a toque de caixa no Senado uma PEC que aumenta o valor do vale-gás e do Auxílio Brasil, mas só até dezembro. Mesmo reconhecendo o caráter oportunista da proposta, a oposição votou com o governo — ao que tudo indica, por medo de perder votos entre os mais pobres. É nessa faixa que Lula abre ampla dianteira sobre Bolsonaro: segundo o Datafolha de junho, a vantagem, que é de 19 pontos porcentuais (47% a 28%) na população em geral, salta para 36 no segmento com renda familiar de até dois salários mínimos (56% a 20%). O instituto mostrou também que, para 35% dos que dizem votar em Lula, faltou comida em casa nos últimos meses. Enquanto o atual mandatário improvisa medidas eleitoreiras para amenizar o drama e fala patacoadas sobre as urnas eletrônicas (leia a reportagem na pág. 24), o petista promete extinguir a fome no país — algo jamais alcançado em seu governo — sem explicar como faria isso. Infelizmente, o atual nível raso de debate político não joga as devidas luzes sobre a dimensão dessa catástrofe. “O objetivo de um governo deve ser um desenvolvimento inclusivo, que olhe para quem é mais pobre e gere emprego”, afirma Affonso Celso Pastore. De fato, nunca o Brasil precisou tão desesperadamente de soluções duradouras nesse campo. Elas não são fáceis e envolvem diversas áreas de atuação, da assistência social a programas que façam a economia deslanchar. Mas o problema precisa ser enfrentado quanto antes. “Nenhuma calamidade pode desagregar a personalidade humana tão profundamente e num sentido tão nocivo quanto a fome”, disse o escritor Josué de Castro, ao chamar a atenção para o assunto em 1946. De fato, o maior desafio nacional do momento é conter o avanço dessa antiga tragédia que tanto envergonha o país.
Com reportagens de Tulio Kruse, João Pedroso de Campos, João Paulo Guimarães e Rosana Felix
Publicado em VEJA de 13 de julho de 2022, edição nº 2797