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Está provado: a justiça tarda

Em um processo que corre há mais de 100 anos, herdeiros da princesa Isabel pedem a posse do Palácio Guanabara, sede do governo fluminense

Por Fernando Molica e Maria Clara Vieira
Atualizado em 4 jun 2024, 16h15 - Publicado em 30 nov 2018, 07h00

A caligrafia firme, elegante, desenhada a bico de pena, esparrama-se por sete folhas datadas de 24 de setembro de 1895. No texto, o advogado do conde D’Eu e da princesa Isabel solicita à Justiça que determine a restituição ao casal do Palácio Isabel, “esbulhado” pelo governo republicano no ano anterior. O documento é a peça inicial de uma ação que aguarda decisão definitiva há nada menos que 123 anos — um tempo, convenhamos, excessivo até para os padrões do lento Judiciário brasileiro. O caso, que já entrou e saiu da pauta várias vezes, seria julgado pelo Superior Tribunal de Justiça na terça 27, mas, sem nenhuma surpresa, a audiência acabou remarcada, a pedido da família. A nova data: 6 de dezembro.

Localizado em Laranjeiras, na Zona Sul carioca, o palácio em questão hoje se chama Guanabara e é a sede do governo do Estado do Rio de Janeiro. Acompanhar o vaivém do processo é um exercício de paciência férrea. O ponto de partida é um decreto de 1891 — ou seja, na esteira da República, proclamada em novembro de 1889 — que determinou a incorporação aos “próprios nacionais” dos bens que constituíam o dote de casamento de Isabel, entre eles o palácio — comprado com dinheiro público — em que ela e o marido passaram a morar em 1865. Na mesma leva, a família ficou sem o palácio da princesa Leopoldina, outra filha de dom Pedro II, que acabou fatiado em repartições públicas e terminou sendo demolido nos anos 1930.

Sem o desprendimento do pai, dom Pedro II, que recusou toda e qualquer indenização do governo republicano, Isabel e o marido, do exílio, puseram-se à luta para garantir seu direito ao palácio. As esperanças se renovaram depois que o novo regime tentou assumir a propriedade e foi barrado pela Justiça. Em 1894, o Ministério da Guerra mandou às favas as filigranas jurídicas e ocupou o imóvel para nele instalar um hospital militar. Abespinhada, a princesa contratou advogado e no ano seguinte entrou com a ação que se arrasta até hoje. O processo foi julgado improcedente em 1897, mas o casal recorreu ao Supremo Tribunal Federal — e nele a papelada dormiria por 72 anos. Apenas em 1969 a ação seria despertada de seu sono por um edital (agora datilografado, marca de tempos mais modernos) que levantou uma questão simples: a Justiça queria saber se ainda havia alguém interessado na causa.

Princesa Isabel e Conde D’Eu
DOTE – Isabel e o conde: direito de uso (P. Gavelle/ Acervo Dom João de Orleans e Bragança, sob a guarda do Instituto Moreira Salles/Divulgação)

Claro que havia. Representantes dos herdeiros logo levantaram o dedo. Embora na letra do processo o intuito seja devolver a propriedade para uso da família, o interesse maior não é despejar o governador fluminense, e sim receber alguma indenização pela perda do imóvel, um prédio histórico de quase 6 000 metros quadrados plantado em um terreno de dimensão quase sete vezes maior em área nobre da cidade. Apenas o palácio, doado pelo governo federal ao antigo Estado da Guanabara, vale, por baixo, uns 60 milhões de reais, quantia suficiente para alegrar os 34 bisnetos da princesa que vivem no Brasil. “O terreno se tornou efetivamente a joia da coroa”, brinca o dono de uma grande corretora carioca.

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A tentação dos cifrões encastelou-­se na causa e ganhou precedência porque, enquanto a papelada original da princesa empoeirava em uma gaveta do STF, os herdeiros de Isabel entraram, em 1955, com outra ação argumentando que aquele primeiríssimo decreto de 1891 era ilegal e reivindicando não apenas o uso, mas a propriedade do prédio (Isabel nunca disse ser a dona do imóvel, só quis fazer valer o direito de sua família de usá-­lo). Os dois processos foram unidos e encaminhados ao Tribunal Regional Federal do Rio. Lá se arrastou até 1995, quando os descendentes sofreram mais uma derrota. “O conde e a princesa tinham apenas o direito de residir no imóvel. Com o fim do império, isso acabou. Além do mais, esta ação deveria estar prescrita”, afirma Daniela Giacomet, procuradora do Estado do Rio que atua no caso. A família, inconformada, apelou.

Descendente da princesa e advogado da causa imperial, Gabriel de Orleans e Bragança argumenta que, na tradição das prerrogativas reais, “o direito à habitação se confunde com o de propriedade”. Bisneto de Isabel, o fotógrafo João Henrique de Orleans e Bragança dá um tom mais, digamos, dignificante à reivindicação: segundo ele, importante acima de tudo é o reconhecimento de que houve uma invasão militar do palácio “por parte de um governo ditatorial”.

Na hipótese de a ação resultar em alguma indenização, não será a primeira vez que a República contribui para o cofre da família imperial. Assinada pelo presidente Getúlio Vargas, uma lei de 1935 autorizou o governo a comprar dela a coroa de dom Pedro II. “Custou o equivalente a 17 milhões de reais”, diz o historiador Paulo Rezzutti. Além disso, até hoje quem adquire imóvel na área central de Petrópolis tem de pagar 2,5% do valor da transação a descendentes do imperador deposto, proprietário da fazenda que deu origem à cidade. Encerrado há quase 130 anos, o império continua a ser bom negócio.

Publicado em VEJA de 5 de dezembro de 2018, edição nº 2611

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