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Esposa de ministro é acusada de corrupção no governo do Piauí

Inquérito com todos os detalhes dessa trama contra os cofres públicos foi enviado recentemente ao Superior Tribunal de Justiça (STJ)

Por Hugo Marques Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 15 dez 2023, 11h48 - Publicado em 15 dez 2023, 06h00

Em 2015, a Controladoria-Geral da União (CGU) descobriu que algumas propostas feitas em um pregão para fornecimento de transporte escolar no Piauí haviam sido desclassificadas sem nenhuma razão aparente. Em certos casos, isso acontece por falta de documentação adequada ou erros de procedimento. Os técnicos decidiram aprofundar um pouco mais a investigação e detectaram que havia algo fora dos padrões: os preços oferecidos pelos vencedores da licitação estavam em média 40% mais altos em relação aos valores de referência — um indício de superfaturamento. A Polícia Federal foi então acionada e, ao aprofundar a apuração, descobriu que o contrato para atender os estudantes carentes, mais do que superfaturado, escondia um genuíno esquema de corrupção. O inquérito com todos os detalhes dessa trama contra os cofres públicos foi enviado recentemente ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Sigiloso, ele tem ingredientes para provocar, no mínimo, um grande constrangimento ao ministro do Desenvolvimento Social, Wellington Dias, responsável pelos principais programas sociais do governo Lula.

Ao longo de oito anos de investigação, o Ministério Público do Piauí denunciou quarenta pessoas por crimes de organização criminosa, corrupção ativa, passiva e lavagem de dinheiro. Em suma, um grupo de empresários combinava os preços, contava com a ajuda de funcionários do governo estadual para vencer a licitação e, depois, rateava entre todos os lucros do negócio. O petista Wellington Dias, que era o governador quando o esquema começou, não está entre os acusados, mas o constrangimento se deve ao fato de sua esposa, Rejane Dias, encabeçar a lista dos beneficiários do caso que foi definido pela Polícia Federal como o “maior esquema criminoso nas contratações de transporte escolar que se tem notícia no país”. A ex-primeira-dama ocupou o cargo de secretária de Educação do governo do Piauí entre 2015 e 2018. Os investigadores colheram provas de que ela recebeu vantagens financeiras da quadrilha. Operações de busca e quebras de sigilo revelaram que um irmão e um ex-­asses­sor de Rejane estavam na lista de pagamentos do grupo criminoso.

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O esquema funcionava assim: locadoras de veículos eram pré-selecionadas em pregões monitorados por funcionários da Secretaria de Educação, comandada por Rejane, que manipulavam a concorrência. Ao receber os recursos dos programas do governo federal para custear o transporte dos estudantes, a secretaria repassava o dinheiro às empresas, que subcontratavam serviços mais baratos de outras empresas e embolsavam a maior parte do dinheiro sem precisar fazer muito esforço. A CGU estima que apenas em um pregão fraudulento, realizado ainda em 2015 — há outros dez processos em andamento —, os desvios ultrapassaram os 50 milhões de reais. A PF dedica algumas páginas do inquérito para explicar a conexão da quadrilha com a ex-secretária de Educação.

A partir do histórico de geolocalização dos celulares de dois operadores financeiros do esquema, os policiais foram montando o quebra-cabeça. Perceberam, por exemplo, uma coincidência muito interessante que acontecia nas datas de pagamento. Quando o dinheiro era creditado, os operadores iam à agência bancária, sacavam dinheiro, seguiam para a empresa, de lá para a casa de um dos acusados de comandar a quadrilha, e, daí em diante, para as duas últimas etapas do roteiro: o condomínio onde morava Rejane Dias e o Palácio Karnak, a sede do governo local. Um dos relatórios da polícia anexado ao processo registra que, no período em que a primeira-dama chefiava a Secretaria de Educação, “as visitas possuíam frequência elevada, relacionada a operações bancárias e à dinâmica de contratos com o governo do estado do Piauí”. De acordo com a PF, foi demonstrado que também já existia uma “relação” antiga entre a esposa do ministro e um dos líderes do esquema.

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Antes de assumir a Secretaria de Educação, Rejane foi deputada estadual pelo PT. Por coincidência, os carros utilizados pelo gabinete dela na Assembleia Legislativa eram alugados da mesma empresa que mais tarde venceria a licitação fraudulenta dos ônibus escolares. Segundo a polícia, há uma segunda coincidência: parte dos valores do contrato de locação eram devolvidos a um assessor da parlamentar — uma espécie de rachadinha empresarial. Há ainda uma terceira coincidência: o dono da empresa é um ex-professor lotado na Secretaria de Educação e foi filiado ao PT antes de decidir ingressar no rentável ramo da locação de veículos. Um inquérito instaurado para apurar esse caso específico concluiu que o aluguel dos automóveis era “forjado com a finalidade de desviar recursos públicos em favor das empresas investigadas e da própria acusada”.

Empossada conselheira do Tribunal de Contas do Piauí no início deste ano, quando já era investigada por corrupção, Rejane Dias já foi alvo de busca. Em 2020, ela recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF), argumentando que teria direito a foro especial por ter sido eleita deputada federal. Ao analisar o caso, a Procuradoria-Geral da República disse que os supostos delitos teriam sido cometidos antes do mandato e reafirmou haver “requisitos de lavagem de dinheiro e longa duração no tempo de funcionamento do empreendimento criminoso”. No mês passado, o juiz responsável pelo caso no Tribunal Regional Federal enviou o inquérito ao STJ, dessa vez para decidir se Rejane, por ter assumido o cargo de conselheira, teria direito a foro especial naquela Corte. Em uma peça sigilosa anexada aos autos, a defesa de Rejane Dias diz que a Polícia Federal atuou de forma “leviana” para tentar incriminar a conselheira e, por associação, o próprio Wellington Dias. Os advogados da ex-deputada anexaram informações de peritos particulares que contestam a análise da geolocalização dos celulares dos investigados e dizem que houve “provável manipulação de dados para legitimar conclusões incriminatórias ilegais e abusivas, com potencial para alterar a percepção do julgador e do titu­lar da ação penal” sobre Rejane. O ministro não quis se manifestar.

Publicado em VEJA de 15 de dezembro de 2023, edição nº 2872

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