“Engoli em seco”, lembra tenente-coronel da PM-SP, após ataque racista
Evanilson Corrêa de Souza, de 51 anos, recorda agressão sofrida em palestra
No último dia 9 de fevereiro, eu ministrava uma palestra on-line a pedido do Instituto de Relações Internacionais da USP. A proposta era falar sobre o programa da Polícia Militar de estruturação de métodos para mitigar o racismo estrutural fora e dentro da instituição. Mas fui interrompido por alguém que colocou uma animação na tela, com um som muito alto. Depois, a pessoa invadiu as minhas transparências e começou a escrever um “M”. Quando escreveu o “A”, eu já falei: “Vão escrever macaco”. Rabiscaram as minhas apresentações com raiva, fizeram desenhos obscenos e escreveram palavrões. Disse aos participantes, na maioria policiais e especialistas em segurança: “Nós estamos sendo vítimas de um ataque cibernético de crime de ódio e racismo. Vamos usar isso didaticamente aqui na aula”. Tenho 31 anos de PM e fui treinado para ter autocontrole. Engoli em seco, perdi parte do conteúdo didático e do raciocínio preparados para a apresentação. Absorvi o golpe e transformei a cena em exemplo para o momento.
Contudo, eu não posso deixar de expor o lado humano do policial, comandante e ao mesmo tempo homem negro. Naquele momento, eu senti todas as dores de um povo, tanto das pessoas distantes quanto das mais próximas. Senti as dores dos meus avós, dos meus pais, dos meus irmãos. Sequer contamos uns para os outros as ofensas passadas durante a vida inteira para não dividirmos essas dores. Mas ali eu absorvi a dor que a pessoa não negra não entende. Porque o racismo mexe por dentro e ninguém de fora vê a ferida. Só quem tem a pele preta sabe e, por isso, para quem está fora da pele, parece vitimismo. Não quero isso para as minhas duas filhas nem para os meus netos, nem para ninguém que venha depois. Eu me recompus rápido, talvez por ser treinado e estar calejado. Mas doeu tanto quanto para todos de nossa cor e para aqueles que estão ao nosso lado. Minha esposa branca não sabia como reagir a um tipo de ataque para o qual não está habituada. Ela sente em parte. Quem tem a pele preta sente integralmente.
No dia seguinte, era meu aniversário de 51 anos. Passamos parte do tempo na delegacia, fazendo um boletim de ocorrência. Ainda é uma incógnita se esse ataque tem a ver com o trabalho que realizo na PM para combater o racismo ou se a pessoa apenas encontrou o tema na internet por meio de algoritmos. Realmente acredito que o tema chamou atenção e, tratado por uma autoridade policial, trouxe a oportunidade de visibilidade para o agressor.
As histórias das pessoas negras, das mulheres pretas e dos homens pretos são as mesmas. Minha esposa já passou situações como a de ver minha filha estar mais livre em algum local, procurando algo em uma prateleira, e o segurança ficar em volta. Não vou falar que a pessoa é racista. Isso está embutido na sociedade. A imagem do negro como desqualificado, bandido, potencial agressor, é perpassada por gerações. Já fui abordado muitas vezes. E tenho amigos brancos que só foram abordados quando estavam comigo. Entendo isso como questões do racismo estrutural.
Trabalho na revisão do manual de direitos humanos da PM de São Paulo, que deve ficar pronto neste semestre. O fator preponderante é a conscientização, a parte mais difícil. Como fazer isso com um indivíduo inserido num contexto social com uma mensagem subliminar de exclusão racial? Para despertar a alteridade, o altruísmo, eu traço um paralelo com o PM, que também sofre preconceito. Ele é visto como aquele cara desprovido de capacidade de articulação ou extremamente violento. Mas quando tira a farda e vai para os ambientes sociais, deixa de ser discriminado. Dizem: “Nossa, você nem parece policial”. O negro não tira a pele. Ele é discriminado o tempo todo.
Evanilson Corrêa de Souza em depoimento dado a Tatiana Farah
Publicado em VEJA de 24 de fevereiro de 2021, edição nº 2726