Enchentes voltam a afetar o RS, enquanto plano de reconstrução caminha em marcha lenta
As novas imagens de ruas alagadas, escolas fechadas, pontes interditadas, pessoas desabrigadas e prejuízos exibem um filme repetido

Era noite de 17 de junho quando os moradores de Eldorado do Sul receberam um aviso da Defesa Civil para o risco de enchentes em razão das chuvas que, mais uma vez, caíam com força em toda a região. Menos de duas semanas após o alerta, enquanto os temporais não cessavam, a prefeitura orientou a população que já havia deixado os locais mais vulneráveis a, simplesmente, não retornar — hoje, mais de 3 600 pessoas continuam fora de suas casas. Infelizmente, isso não representou nenhuma novidade para os 41 000 habitantes da cidade banhada pelo Lago Guaíba na área metropolitana de Porto Alegre, que chegou a passar por uma evacuação quase completa em 2024, quando teve 90% do seu território submerso durante a catástrofe climática que devastou o Rio Grande do Sul.
O drama é o retrato de uma crise que persiste no estado enquanto o bilionário plano de reconstrução e prevenção avança lentamente desde a tragédia de 2024. As chuvas recentes já causaram danos em mais de 100 cidades, forçaram cerca de 8 000 pessoas a deixar ao menos temporariamente suas casas. Mais de 1 200 estão em 33 abrigos espalhados por vinte municípios. Três gabinetes de crise foram instalados em Caxias do Sul, Lajeado e Santa Cruz do Sul. Ao menos 2 000 famílias tiveram de se socorrer do Volta por Cima, um auxílio único de 2 000 reais, criado para ajudar as pessoas mais vulneráveis.
Na capital, Porto Alegre, que ficou submersa durante semanas em 2024, a ameaça do Guaíba voltou a pairar. O volume das águas superou a cota de inundação e as ruas da zona sul voltaram a alagar, enquanto as ilhas sofrem com enchentes intermitentes há quase um mês. Das catorze comportas, três foram desativadas em razão dos danos no ano passado. As onze restantes foram fechadas ao longo dos dias para conter o Guaíba e quatro foram reforçadas com sacos de areia. A prefeitura afirma que fez a limpeza de resíduos dos canais, a reconstrução dos diques e a instalação de geradores em dezoito das 23 casas de bombas que controlam o nível da água. “Áreas que hoje são ocupadas irregularmente eram quase rurais em 1968, quando o sistema foi projetado, e a adaptação contra enchentes esbarra no problema da moradia irregular”, diz Bruno Vanuzzi, diretor-presidente do Departamento Municipal de Água e Esgotos.

A expansão urbana desenfreada não explica tudo, como sugerem as autoridades. Exemplos de ineficácia estão por toda parte. As 130 estações hidrometeorológicas para monitoramento do clima e dos rios, anunciadas na esteira da catástrofe de 2024, tiveram suas localizações definidas só no mês passado — sem prazo de operação. Os quatro diques previstos nem sequer saíram do papel e devem ser finalizados somente em 2031.A Ponte da Cooperação, sobre o Rio Caí, construída para ligar Caxias do Sul e Nova Petrópolis após a destruição da BR-116 em 2024 e inaugurada em setembro passado, foi danificada por inundações e está bloqueada.
As chuvas escancaram ainda o quadro de sucateamento da Defesa Civil. Segundo o Tribunal de Contas do Estado, 44% das cidades seguem com planos desatualizados e 17% nem possuem um planejamento para crises. A omissão se estende ao governo federal, que arrasta há dois anos a publicação do plano nacional. “Sem plano, a resposta é improvisada, e o improviso custa vidas”, diz Jordan de Souza, coordenador da especialização em resiliência de comunidades da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Mesmo medidas mais urgentes, como uma nova moradia aos desabrigados, demoram a andar. Em maio de 2024, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva visitou um abrigo em São Leopoldo e prometeu que todos os que perderam seus lares teriam a sua “casinha”. “Vamos esperar a água abaixar. Não perca a fé”, disse a um desabrigado. Segundo o balanço do Minha Vida Reconstrução, das 20 000 casas previstas, só 1 184 estão em construção e 16 500 seguem em fase de contratação. Um terço das cidades nem apresentou estimativa de quantos imóveis precisa.

A demora, segundo as autoridades, se deve tanto à burocracia dos projetos quanto à complexidade das obras. “Um quadro histórico de problemas urbanos não se resolve em um ano. Há uma narrativa política que ignora a necessidade de elaborar projetos a longo prazo com responsabilidade e avaliação dos impactos ambientais”, afirma Pedro Capeluppi, secretário de Reconstrução do governo do estado.
Enquanto isso, sobra exploração política de todo lado. O governador Eduardo Leite desembolsou parte da verba da reconstrução para produzir e exibir nos cinemas gaúchos o documentário Todos Nós por Todos Nós, no qual se projeta como herói da retomada da normalidade no estado. O trailer virou munição para opositores, como o deputado Paulo Pimenta (PT), ex-ministro extraordinário da Reconstrução de Lula, que fez chacota da autopromoção e chamou o governador de “Eduardo Lento” em posts e vídeos nas redes sociais.
As novas imagens de ruas alagadas, escolas fechadas, pontes interditadas, pessoas desabrigadas e prejuízos variados causados pelas chuvas mostram que, a despeito de haver dinheiro, não houve competência para evitar o filme repetido — e ruim. Enquanto as autoridades se eximem de suas responsabilidades, os gaúchos sofrem com o desastre recorrente.
Publicado em VEJA de 4 de julho de 2025, edição nº 2951