Emagrecer na faca
O Brasil já é o segundo país que mais realiza a cirurgia bariátrica, procedimento que reduz o tamanho do estômago. E concorre para ser o primeiro. Por quê?
Passado o Carnaval, voltemos à dura realidade. De cada 100 brasileiros, cinquenta estão fora do peso — ou melhor, acima do peso. Levam no corpo cerca de 15 quilos a mais, tomando-se como referência uma pessoa com 1,70 metro de altura. Desses cinquenta, dezesseis estão empenhados numa guerra contra a balança, mas não conseguem voltar à forma nem mudar seus hábitos alimentares. E, ainda dentro dos cinquenta, há 32 milhões de brasileiros que vivem uma situação dramática em termos de peso — são obesos, com pelo menos 30 quilos extras. Por desajustes biológicos, propensão genética ou maus hábitos alimentares, esses homens e mulheres tentam de tudo na academia e à beira da mesa, e, no entanto, nunca obtêm êxito em melhorar a silhueta e a própria saúde. O que fazer?
A alternativa, que ganha cada vez mais tração na sociedade brasileira, é a cirurgia bariátrica, nome esquisito para um procedimento que consiste na redução da dimensão do estômago e do intestino e vem sendo adotado desde o início da década de 90. É uma saída radical. Nos últimos anos, com o avanço das técnicas de operação e o desenvolvimento de medicamentos que permitem uma convivência mais saudável com o novo corpo, deu-se uma explosão de busca pela cirurgia bariátrica. Em apenas cinco anos, a procura pelo procedimento aumentou 47%, de acordo com as estatísticas da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica. É um crescimento superior ao de cirurgias mais simples, como a extração de vesícula (subiu 38%) ou de tireoide (6%).
Com esse salto, o Brasil pulou para o topo do ranking mundial da redução de estômago — perdendo apenas para os Estados Unidos, o império mundial da obesidade. O país, no entanto, não é o segundo lugar em obesidade no mundo — ocupa o quinto posto, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde. Mas o cenário nacional vem piorando em ritmo acelerado. Em 1980, apenas 7% da população brasileira era obesa. Em 2015, eram 18% — um aumento semelhante ao observado nos Estados Unidos. Mas, considerando-se apenas a última década, a taxa de obesidade no Brasil cresceu em ritmo superior ao da taxa americana. A continuar assim, estima-se que em cerca de dez anos os brasileiros possam estar tão obesos quanto os americanos.
Por quê? Porque, além de questões biológicas ou genéticas, estamos comendo mais em resposta aos apelos de uma indústria que incentiva o consumo de alimentos hipercalóricos, vende porções de fast-food cada vez mais robustas e espalha máquinas automáticas de alimentos em todos os cantos. O mecanismo da obesidade é comparável ao vício porque envolve o sistema cerebral de recompensa. Por isso tudo, a cirurgia bariátrica tem virado uma preferência nacional — que vai aumentar ainda mais. Em uma decisão recente, o Conselho Federal de Medicina ampliou a indicação do procedimento. Antes, a bariátrica era recomendada apenas a adultos com obesidade mórbida — ou seja, com índice de massa corporal, o IMC, acima de 40. Agora, é indicada também para adolescentes e para aqueles com IMC a partir de 30 e com diabetes descontrolado.
“Quanto antes for feita a cirurgia, melhor”, diz Almino Ramos, presidente da Federação Internacional para Cirurgia de Obesidade e Transtornos Metabólicos. “O cálculo é simples: quanto mais tempo uma pessoa se mantiver obesa, menor será seu tempo de vida.” Os quilos a mais ainda na juventude provocam aumento da pressão arterial e alterações importantes na estrutura do coração. É um perigo. Adultos com obesidade grave desde a infância vivem até dez anos menos do que quem manteve a linha. O desequilíbrio prematuro faz aumentar em três vezes o risco de diabetes do tipo 2. “Somente 10% das pessoas conseguem perder muito peso e manter essa condição por mais de cinco anos só com estilo de vida”, diz o endocrinologista Walmir Coutinho.
Atualmente, há 5 milhões de brasileiros elegíveis para emagrecer na faca. Repetindo: 5 milhões. As mulheres adultas, com idade de 25 a 35 anos, são as que mais recorrem ao tratamento — elas são 70% dos pacientes. Há poucos meses, a consultora de telemarketing Sarah Cortez de Sousa, 34 anos e 105 quilos, submeteu-se à bariátrica em um hospital de São Paulo. O procedimento foi feito a partir de cinco microcortes na região abdominal com menos de 1 centímetro cada um. Por eles entraram pinças, um grampeador de titânio e uma microcâmera. Controlados por um cirurgião, os instrumentos passaram por uma camada de 8 centímetros de gordura, até chegar ao estômago. O órgão foi então grampeado e passou a ter 10% de seu tamanho original. Em oito meses, ela perdeu 43 quilos (veja o depoimento de Sarah e de outros pacientes ao longo desta reportagem).
O Brasil também é um dos campeões mundiais em outra área da medicina — a das cirurgias plásticas, quase sempre atreladas a preocupações estéticas, sobretudo com a redução da gordura corporal aparente. Não se pode comparar a plástica com a bariátrica, que invariavelmente nasce de um problema de saúde, e não de um padrão de beleza. Há, no entanto, uma ponte de comunicação entre as duas práticas. Em um país tropical, mais da rua do que da casa, o culto ao corpo faz diferença. Os gordos sofrem preconceito, os mais magros ganham elogios — é o que se vê desde cedo. “O bullying pode fazer inclusive com que a pessoa coma até como forma de automutilação”, diz a endocrinologista Claudia Cozer Kalil, coordenadora do núcleo de obesidade e cirurgia bariátrica do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. Por tudo isso, somado ao aperfeiçoamento das técnicas cirúrgicas, a bariátrica só cresce. Quando foi criada, na década de 80, apresentava um índice de mortalidade de 1,5%. Hoje, ele caiu para 0,1%. As operações duravam três horas. Hoje, apenas uma. O paciente tinha alta cinco dias depois. Agora, deixa o hospital em 24 horas.
Há dois tipos mais comuns de cirurgia bariátrica. A de Sarah, que perdeu 43 quilos em oito meses, é a mais frequente. Chamada de by-pass gástrico, caracteriza-se pela redução do estômago por meio de grampeamento do órgão. A segunda variante é a gastrectomia vertical, que reduz o estômago para aproximadamente um terço do tamanho original. Essa técnica é recomendada para pessoas que precisam perder menos peso. Independentemente do tipo de operação, o paciente consegue seu objetivo, emagrecer, porque perde a fome radicalmente — a quantidade de comida consumida cai a um quarto, em média, por falta de espaço de armazenamento. É esse o grande trunfo da bariátrica: reduzir a vontade de comer.
O momento pós-cirúrgico é um dos maiores desafios. Mesmo com a fome suprimida, não é simples habituar-se a pouca comida. Na primeira semana, somente líquidos são permitidos, e em quantidade pífia. Os operados consomem 50 mililitros de água (o equivalente a um copinho de café) a cada 15 minutos. Na segunda semana, a alimentação é cremosa. Na terceira, permite-se a textura de purê, mais consistente. Só a partir da quarta semana alguns alimentos são introduzidos na dieta sólida. Para o resto da vida os pacientes devem repor nutrientes, como vitaminas, sais minerais e proteínas.
Quatro meses depois da cirurgia, perdem-se, em média, 20% do peso total. O objetivo da operação é ficar com 40% a menos dos quilos originais em dois anos. “A cirurgia bariátrica não se resume ao emagrecimento, no entanto. Ela deflagra uma sinfonia de reações”, explica o presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica, o cirurgião Caetano Marchesini. Ao mexer na arquitetura do intestino e do estômago, a orquestra hormonal desregulada se rearranja. É como se redefinisse o ponto de ajuste, o pontapé inicial para o corpo voltar a funcionar — a tal da nova chance. Após a cirurgia, pelo menos dez hormônios produzidos sobretudo pelo estômago e intestino e relacionados à obesidade são alterados de modo a promover o emagrecimento. É o caso do freio na grelina (composto responsável pela sensação de fome), da leptina (substância da saciedade) e da dopamina (ligada ao bem-estar). O impacto da cirurgia nas doenças associadas ao excesso de peso é brutal. “Na primeira semana, a pressão arterial já está controlada e o diabetes também”, diz Ricardo Cohen, coordenador do Centro de Cirurgia Metabólica do Hospital Oswaldo Cruz, em São Paulo. A longo prazo, o risco de derrame cai 80%, o de apneia do sono, 85%. Os níveis de colesterol baixam 70%.
Apesar dos avanços técnicos e das facilidades, a cirurgia está longe de ser uma intervenção simples. Seu impacto biológico e comportamental é enorme, tanto que se recomenda, em alguns casos, acompanhamento psicológico. Em outras palavras, a silhueta muda, mas a cabeça também.
Há relatos de abuso de álcool. Um grupo de trabalho da Universidade Pittsburgh, nos Estados Unidos, acompanhou homens e mulheres em dez hospitais ao longo de sete anos após a cirurgia bariátrica. Resultado: antes do procedimento, 7% abusavam de álcool. Depois da cirurgia, o índice saltou para 16%. Algumas hipóteses foram consideradas para esse aumento de consumo. A alteração fisiológica na absorção pelo intestino das bebidas e alimentos leva mais rapidamente à sensação de entorpecimento, com poucos goles. “Uma segunda possibilidade é o aumento do risco de substituição da fonte de prazer: da comida para o álcool”, diz Mauricio Serpa, psiquiatra do Instituto de Psiquiatria da USP.
Ao lado dos desafios psicológicos, há também vantagens psicológicas. A melhora na autoestima é uma delas. Quem se submete à cirurgia bariátrica tem maior probabilidade de mudar o status de relacionamento, de acordo com um estudo sueco publicado na JAMA Surgery. Segundo os resultados, há um aumento de 15% no índice de divórcios entre os pacientes casados. Entre os solteiros, verificou-se um aumento de 21% no índice de casamentos ou de novos relacionamentos nos primeiros quatro anos depois de submetidos ao método. A cirurgia emagrecedora muda o corpo e a mente, e os depoimentos das pessoas que já se submeteram ao procedimento são um testemunho disso. Nos primeiros dias, os pacientes exibem certo constrangimento e escondem a cirurgia, mas depois, com a redução do peso, passam a celebrá-la como uma vitória pessoal que antes soava inalcançável. É uma reviravolta extraordinária, como mostra o exemplo radical — e assustador — de dom Sancho (932-966), rei da Península Ibérica.
O monarca tinha problemas com sua circunferência exagerada, que o impedia de andar a cavalo, atividade fundamental naqueles tempos medievais. As limitações o fizeram perder o trono. Acompanhado pela avó, desesperado, ciente de que não conseguia fechar a boca, dom Sancho viajou para Córdoba, na Espanha, para ser tratado por um famoso médico de origem judaica. A solução dada pelo especialista foi aterradora: suturar os lábios do rei, deixando apenas espaço para a entrada de um canudo, pelo qual passou a se alimentar de uma dieta líquida. Sancho sofreu com dores lancinantes, mas, meses depois, perdera metade de seu peso. E assim, podendo se movimentar como os outros monarcas de seu tempo, recuperou, a galope, o cetro perdido.
Publicado em VEJA de 13 de março de 2019, edição nº 2625
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