Como o derramamento de óleo no litoral do Nordeste virou uma crise
Reação demorada e confusa ao desastre ambiental faz o governo passar do papel de vítima à condição de vilão do problema
As chamas que arderam na Amazônia ainda não tinham se extinguido completamente quando uma nova crise bateu à porta de Ricardo Salles, o ministro do Meio Ambiente. No fim de agosto, as primeiras manchas de petróleo começaram a surgir no litoral da Paraíba, em circunstâncias desconhecidas. Desde então, pelo menos 200 praias de todos os nove estados da Região Nordeste foram atingidas por uma espécie de piche que navega abaixo da superfície no mar e só aparece ao tocar o continente, carregado pela maré. A condução do problema pelas autoridades de Brasília seguiu roteiro já visto durante os incêndios na floresta: lento para perceber o tamanho da encrenca, rápido para apontar culpados e trôpego ao tomar medidas concretas para mitigar os estragos. Já são mais de 900 toneladas de óleo retiradas das areias no maior desastre do gênero ocorrido no país.
Foi apenas em 5 de outubro, ou mais de um mês depois do primeiro sinal de alerta, que o presidente Jair Bolsonaro acionou a Polícia Federal, a Marinha e os órgãos ambientais do governo para investigar as causas do vazamento e os responsáveis por ele. “Não é responsabilidade nossa. A análise continua para saber se a gente consegue detectar de que país é, de onde veio e qual navio petroleiro derramou esse óleo”, declarou Bolsonaro na época. Levantamentos de especialistas da Petrobras e da Universidade Federal da Bahia concluíram que o óleo é de origem venezuelana. “Temos certeza absoluta disso”, afirma Salles, que em rede nacional de TV no último dia 23 anunciou que o presidente ordenara que ele enviasse à Organização dos Estados Americanos (OEA) uma solicitação para que a Venezuela se manifestasse. A causa do derramamento ainda é um mistério. Bolsonaro tentou emplacar uma teoria conspiratória ao sugerir que o vazamento foi criminoso — segundo ele, teve o objetivo de prejudicar o leilão de blocos de exploração de petróleo. Faltou explicar a conexão entre as duas coisas.
A reação demorada e confusa ao problema fez o governo passar do papel de vítima à condição de vilão, tendo de se explicar. O primeiro a apontar o dedo foi o Ministério Público Federal. Procuradores dos nove estados do Nordeste foram à Justiça acusar o governo de omissão e pedir que ele fosse compelido a acionar o Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo, uma espécie de protocolo que lista procedimentos a ser adotados em emergências. Para o MPF, a União foi omissa ao demorar a tomar medidas de proteção ao meio ambiente e não atuar de forma articulada na região. Por enquanto, a juíza Telma Maria Santos Machado apenas solicitou aos procuradores que detalhassem quais ações deveriam ser tomadas. Embora o governo tenha alegado à Justiça Federal que as primeiras inspeções da Marinha começaram quando as manchas foram identificadas, esse plano só ganhou uma coordenação, da mesma Marinha, em 6 de outubro. Foi a partir daí que Salles passou a fazer reuniões para tratar do caso e a intensificar a mobilização oficial para a limpeza das praias, até então tocada basicamente por um exército de voluntários. Em sua defesa, o governo afirma ter mobilizado um enorme aparato para ajudar a conter os danos, incluindo quinze navios, quatro helicópteros e dois aviões.
A frota disponibilizada não conseguiu desfazer a impressão de que se está fazendo pouco diante da dimensão do problema. Enquanto as manchas de óleo se multiplicavam, a conhecida animosidade do Palácio do Planalto com os governadores do Nordeste — quase todos de esquerda — ganhou novo combustível com a cobrança por um apoio efetivo de Brasília. Pelo Twitter, Ricardo Salles trocou farpas com o governador Rui Costa (PT) ao afirmar que, quando foi à Bahia, não viu “ninguém do governo estadual” engajado na remoção do óleo. O petista retrucou: “De helicóptero realmente não tinha como ver. Fazer foto e dizer que trabalhou é muito fácil”. O governador de Pernambuco, Paulo Câmara (PSB), classificou a reação federal de improvisada. Salles evitou responder às críticas, afirmando que não era momento de polemizar nem de politizar o caso.
Ao mesmo tempo, ele partiu para a polêmica com o Greenpeace ao sugerir que a entidade não participa dos mutirões de limpeza. “O ministro espalha falácias sobre a atuação de ONGs, como vimos nas queimadas na Amazônia, como forma de desviar a atenção da sua própria inação e incompetência”, respondeu o grupo. Na quarta-feira 23, após ato do Greenpeace no Palácio do Planalto, o ministro chamou o grupo de ecoterrorista — e incluiu a Venezuela na crítica. “Não bastasse não ajudarem na limpeza do petróleo venezuelano nas praias do Nordeste, os ecoterroristas ainda depredam patrimônio público”, escreveu Salles no Twitter, fazendo referência a um líquido parecido com petróleo jogado na frente do prédio do governo. Ao menos dezenove militantes foram detidos no protesto, o mais ruidoso até então contra o governo. Na terça-feira 22, um grupo de pescadores já havia invadido a sede do Ibama em Salvador.
Desde o início da crise, Bolsonaro não foi à região afetada. Enquanto isso, outros políticos se movimentam para ganhar protagonismo. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que assumiu interinamente a Presidência da República na quarta 23, por ocasião de viagem ao exterior de Bolsonaro e do vice, Hamilton Mourão, teve como primeiro ato no cargo a visita ao Nordeste com uma comitiva de parlamentares, para “verificar as providências” tomadas. Antes de ir para o exterior, Mourão anunciou que destacaria até 5 000 homens do Exército para trabalhar na limpeza das praias, serviço que vinha sendo feito com o apoio da Marinha. “Nós não julgávamos ser necessário empregar o Exército. Quando precisou, nós empregamos”, disse o ministro da Defesa, Fernando Azevedo. Já no Senado, a Comissão de Meio Ambiente pediu ao governo que decrete estado de emergência ambiental para todos os estados — iniciativa que, por enquanto, já foi tomada pelos governos da Bahia e de Sergipe. Uma comissão externa foi instalada pela Casa para acompanhar as ações, o que promete pressão extra sobre o Palácio.
Enquanto isso, o desastre segue sua marcha. As manchas de óleo chegaram nos últimos dias ao Morro de São Paulo (BA), mais um destino turístico atingido pelo óleo no momento em que já se veem no horizonte o fim do ano e a temporada de verão. Registros de que o petróleo também atingiu recifes de corais, um ecossistema ambientalmente sensível, são outro indício de que estamos só no início de um problema de dimensões ainda incalculáveis. O tempo corre contra o governo.
Publicado em VEJA de 30 de outubro de 2019, edição nº 2658