Como a Revolução de 1924 ajuda a entender a gênese das ditaduras
Esquecida, a revolta que ocorreu há 100 anos em São Paulo foi iniciada com movimento tenentista que queria derrubar o governo federal
Há exatos 100 anos, a cidade de São Paulo foi palco de um inesperado conflito armado urbano, um dos mais agressivos da América Latina no século XX. Na manhã de 5 de julho de 1924, aviões Curtiss H-12 da Força Aérea Brasileira atacaram o Campo de Marte, no bairro de Santana, Zona Norte da capital. Foi a reação do governo federal à revolta tenentista cuja meta era derrubar da presidência da República o mineiro Artur Bernardes (1875-1955), acusado pelos rebeldes paulistas de corrupção e de favorecer a oligarquia de seu estado na chamada “política do café com leite” — alternância de poder entre as elites de Minas Gerais e São Paulo durante a República Velha (1889-1930). Nos dias seguintes, os bombardeios se intensificaram, atingindo as regiões do Brás, Mooca, Belenzinho e Cambuci — bairros historicamente operários.
Ao longo dos 23 dias da revolta, forças revolucionárias e governistas espalharam o caos e o medo. O Palácio dos Campos Elíseos, sede da administração estadual, ocupado por tropas rebeldes, foi atingido por bombardeios. Os maiores afetados estavam na base da pirâmide social: uma enorme massa de imigrantes e trabalhadores. “Cortaram as luzes e, à noite, os tiros sacudiam a casa… era o barulho do canhão”, relataria, nas páginas dos jornais, Alice, moradora da Liberdade, na região central. “Eu só tinha medo de morrer no escuro.” Cerca de um terço da população, em torno de 700 000 habitantes à época, deixou a cidade. Quem não conseguiu sair se entocou em porões e abrigos improvisados. Houve pelo menos 500 mortos.
Ao término do conflito, Bernardes saiu vitorioso. Um de seus aliados, o deputado federal gaúcho João Simplício, disparou uma boutade de tom profético: o conflito seria esquecido por 100 anos. Apesar de razoavelmente bem documentado, com fotos e reportagens, o movimento nunca fez parte do calendário de efemérides de São Paulo, como ocorre com a Revolução Constitucionalista de 1932. É comum ser citado apenas como parte do levante tenentista deflagrado em 1922. O apelido de “revolta esquecida”, portanto, é pertinente. “Não há nada na cidade que remeta a esses acontecimentos”, diz Moacir Assunção, autor de São Paulo Deve Ser Destruída (Editora Record). “Não há nenhum monumento de recordação, só restaram cicatrizes em alguns prédios atingidos pelos ataques.”
Dada a relevância de tudo o que aconteceu, há, hoje, um trabalho de resgate das lembranças adormecidas. Tramitam na Assembleia Legislativa de São Paulo três resoluções que buscam despertar o legado de 1924. Uma delas pretende incluir o general Miguel Costa, líder dos revoltosos, entre os heróis da Polícia Militar. Outra propõe que o dia 5 de julho seja marcado no calendário do estado como o Dia da Memória da Revolta Paulista de 1924. Por fim, há uma petição para a criação de um prêmio com o nome do líder militar para ser destinado a policiais que tenham se destacado na defesa da vida e da democracia. “Acho que, enfim, a memória de meu avô está segura”, diz Yuri Abyaza, neto de Costa e guardião natural de seu legado. “Ainda que tenha levado um século, terá valido a pena.”
Os tenentes que deflagraram a grita armada eram militares que pretendiam “refundar” a República, frustrados com os caminhos seguidos pela elite fincada no poder, os oligarcas da cafeicultura. Queriam derrubar o governo e instalar uma suposta ditadura cívico-militar “provisória” para modernizar o Brasil ao instituir voto secreto, separar a Igreja do Estado e reestruturar os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Foram derrotados, mas de certa maneira alcançariam seus objetivos com a Revolução de 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder e depois à autocracia, com apoio total tenentista, à exceção de Luís Carlos Prestes, que seguiria o comunismo. “É necessário entender as origens das ditaduras brasileiras”, diz Dácio Nitrini, autor de Tenentes Rebeldes (Editora Terceiro Nome). Cutucar o passado, ao tirar poeira dos arquivos, é sempre o bom caminho para entender o presente.
Publicado em VEJA de 12 de julho de 2024, edição nº 2901