A geração do aqui e agora: como os millennials moldam o mundo
Pela primeira vez em meio século, os destinos do planeta estão nas mãos de uma nova faixa etária, de 24 a 39 anos
CONEXÃO É VIDA
A advogada carioca Leticia Becker, 28 anos, que atua em uma startup de mobilidade urbana em São Paulo: “Trabalho, estudo e tenho todo tipo de entretenimento pela internet”, diz ela
O mundo mudou, e não é só por causa dos perrengues universais provocados pela pandemia. Entre os habitantes do planeta, a parcela majoritária em idade produtiva, que já está ditando o modo de pensar, viver, trabalhar e consumir e continuará a fazê-lo por décadas, são os chamados millennials — e eles são muito diferentes de tudo aquilo a que estávamos acostumados. A comprovação mais cabal de que as cartas estão nas mãos de uma nova geração se deu nos Estados Unidos, uma espécie de farol do comportamento ocidental: lá, em abril, os millennials, jovens entre os 24 e 39 anos assim denominados por nascerem com a existência voltada para o que seria o novo milênio, ultrapassaram em número os baby boomers, a turma então predominante que cresceu e apareceu como fruto das mudanças e da prosperidade que se seguiram à II Guerra Mundial (veja o gráfico abaixo). Antes dos Estados Unidos, a América Latina, a China e a Índia já registravam um em cada quatro habitantes dentro dessa faixa etária, que também agrupa a maior fatia populacional — 34% — no Brasil. Discretamente, sem grande alarde, o globo vem se ajustando aos efeitos de uma sacudida demográfica de enorme significado, capaz de estremecer os pilares da política, da economia e dos valores inclusive na Europa, mais envelhecida porém, e mesmo assim afeita à influência dessa tribo que molda o mundo e é moldada por ele.
Os millennials se encontram no topo da pirâmide econômica do planeta, somando 1,8 bilhão de pessoas — quase um terço da população. Esse universo em expansão deve representar, em 2030, 4 trilhões de dólares em poder de compra, segundo previsão do Banco Mundial. No Brasil, serão maioria da força de trabalho já no ano que vem e em uma década preencherão 70% dos postos (veja o gráfico na pág. 62). Vem daí, provavelmente, o medo constante do desemprego, citado como grande preocupação em todas as pesquisas. Mesmo estando situados em camadas sociais diversas e separados pela desigualdade social na maior parte dos países, o Brasil entre eles, esses jovens unem-se pela conexão com a internet em matéria de sonhos e aspirações. “Muitas vezes, eles só têm recursos para adquirir o básico, mas ambicionam os mesmos produtos e experiências que a parcela mais favorecida”, observa a socióloga e pesquisadora Marilene Pottes, da Antenna Consultoria.
RAZÃO E CONSUMO
O casal Lucas Iff, 30 anos, e Priscila Martins, 27, ela mineira e ele carioca, foi morar no interior de Minas Gerais. “Não nos importamos de pagar mais caro por marcas com engajamento ambiental”, afirma Lucas
A virada geracional tem alto potencial para influenciar votações, inclusive a disputa presidencial que se aproxima nos Estados Unidos, onde 42% dos eleitores serão millennials em 3 de novembro, contra 22% em 2014. A notícia não é boa para o republicano Donald Trump, rejeitado por 64% deles por encarnar radicalismos e preconceitos que a turma rejeita. Mas o democrata Joe Biden também não os entusiasma: embora esteja 20 pontos à frente do adversário nas intenções de voto, é visto de modo negativo por 57% dessa fatia populacional, que diz que só vai cravar seu nome na urna por falta de alternativa.
Quem são, afinal, esses jovens adultos que têm as rédeas da humanidade nas mãos? A resposta, em princípio complicada por abarcar usos e costumes de gente espalhada por todos os continentes, hoje em dia é facilitada pelo fator web, que fez da juventude atual uma massa mais ou menos homogênea em matéria de gostos, hábitos e aspirações (veja o quadro da pág. 65). Tendo crescido junto com a disparada das redes sociais e dos smartphones, o millennial é, acima de tudo, um conectado, grudado na tela do celular dia e noite ou, como eles dizem, 24/7 (twenty-four/seven, em inglês, por favor). O tempo dedicado a mensagens cifradas, ícones, fotos e vídeos, sua forma de se relacionar com seus pares, fez dele um ser autocentrado e narcisista — e as selfies em série estão aí para uma amostra dessa face. Ao mesmo tempo, a convivência em tribos ativou neles o engajamento em causas sociais, destacando-se em primeiríssimo lugar as ações em prol do meio ambiente — aquecimento global e produção sustentável estão no topo da lista de suas preocupações.
A atitude tem, é claro, reflexo no que consomem. Como a demanda desse contingente populacional é um potente motor da economia, as empresas estão revirando seus conceitos para se adaptar a um novo comprador, mais saudável e consciente, atento para a qualidade de vida, a sustentabilidade e os valores éticos. “Em plena idade produtiva, essa geração não está só mudando a maneira de consumir, como atuando diretamente na transformação de bancos, companhias de telefonia, redes de varejo e empresas de tecnologia e inovação”, afirma o sociólogo Dario Caldas, diretor do Observatório de Sinais, consultoria de tendências em comportamento.
DO NINHO NINGUÉM ME TIRA
A capixaba Vivian Doimo, 27 anos, foi estudar no Rio, onde mora com os tios, e sonha ser juíza. “Estou me preparando para um concurso e não tenho pressa de trabalhar nem de casar”, diz
Passar o tempo fazendo o que gosta e aproveitar cada minuto da melhor forma possível é o objetivo declarado do millennial, que em geral não cultiva ambições espetaculares (tirando a de gerar e vender um unicórnio, as startups de 1 bilhão de dólares, o que costuma ser mais sonho do que projeto). Uma observação sistemática de seus perfis mostra adesão irrestrita ao lema “só se vive uma vez” — ops, you only live once, encapsulado na sigla YOLO, de alta frequência nas redes. Individualista, adepto de exercícios e de um modo de vida mais saudável para si e, por tabela, para o planeta em que vive, o millennial desenvolveu a paradoxal capacidade de dar pouca bola para as grandes questões da civilização, o que é ruim ou bom. Vão vivendo, ponto — e são inflexíveis.
Morar sozinho e comprar um carro, atos que baby boomers e Hollywood transformaram em ritos de passagem para a vida adulta, saíram de moda. O jovem moderno nem aprende a dirigir e não tem nenhuma pressa de se desprender do lar paterno, o que lhe dá liberdade para fazer as coisas no tempo que achar adequado. Por outro lado, sempre dentro de sua bolha, não aproveita a chance de conversar e desfrutar da experiência dos mais velhos, uma das falhas no aprendizado da tribo. Resistente a rótulos, essa juventude mantém distância de partidos, religiões e instituições, uma indiferença que, se de um lado estimula certa alienação, de outro incentivou nela uma maior aceitação da diversidade de raças e gêneros.
TANTAS BANDEIRAS
O defensor público Luís Henrique Zouein, 29 anos, do Rio, repisa valores como tolerância e diversidade e preza o bem-estar do corpo e da mente. “Pratico tudo isso no dia a dia”, garante
Acostumado à ausência de lideranças definidas nos movimentos empreendidos em redes sociais, o millennial simplesmente desconhece autoridade. Sendo assim, não tem por que se rebelar contra ela e aceita o establishment e o uso da máquina em vigor para alcançar as transformações que almeja — no que é o exato oposto da juventude rebelde dos baby boomers, em constante mobilização pelos direitos das mulheres, pela igualdade racial e pela paz mundial. “Além de numericamente relevantes, os millennials são formadores de opinião, influenciando outras faixas”, diz Ricardo Ismael, cientista político e professor da PUC-Rio. Artistas dessa fatia etária, como o youtuber Felipe Neto (que dá opinião até sobre o que não sabe), a cantora Iza e o ator Bruno Gagliasso, assumem posições sabendo perfeitamente que vão inspirar outras pessoas. Políticos que defendem minorias, dizem prezar a ética e fogem do padrão convencional costumam contar com seu apoio, sem grande distinção partidária. “A cada eleição, eles serão mais decisivos”, ressalta o sociólogo Paulo Baía, da UFRJ. “Busco políticos que sejam tolerantes com o diferente, que promovam diversas visões de mundo e governem para todos”, concorda o defensor público Luís Henrique Zouein, 29 anos, que, como muitos millennials, procura conciliar a carreira com as causas em que acredita.
Na mesma toada de “minha satisfação em primeiro lugar”, o jovem adulto de hoje se envolve em vários projetos ao mesmo tempo e muda de emprego sem piscar. “Sou ambiciosa e procurei um lugar onde pudesse crescer rápido. Em quatro meses, avancei aqui muito mais do que em uma empresa tradicional”, explica a carioca Leticia Becker, de 28 anos, que trocou um escritório de advocacia pela chance de trabalhar na startup de mobilidade urbana 99 — os nichos de novidades tecnológicas, com os desafios e riscos que carregam, são o emprego dos sonhos. Com seu novo jeito de ser, eles estão forçando o mercado a atender às suas vontades e caprichos. “Não compram apenas produtos. Querem coisas que traduzam as mensagens em que acreditam”, diz Keith Niedermeier, professor de marketing da Wharton School, da Filadélfia.
Viajar (sempre atento à pegada de carbono) e viver novas experiências estão no topo das atividades preferidas de uma geração que dá mais valor a usufruir do que a ter, o que embasa o sucesso de empresas de compartilhamento como Uber, Airbnb e o coletivo de escritórios WeWork. “No papel de consumidores, são mais ativos e exigentes do que as gerações anteriores. Pedem marcas que se posicionem de forma transparente e que ousem pôr em prática novos tipos de negócios”, diz Daniela Cachich, vice-presidente de marketing de alimentos da PepsiCo Brasil. A lição está sendo aprendida a duras penas por nomes consagrados como Unilever e Coca-Cola — esta, uma marca-símbolo da juventude que perdeu o ritmo ao não perceber a tempo que millennial que é millennial torce o nariz para refrigerantes, e agora corre atrás do prejuízo. “Buscamos o engajamento de uma marca em causas em que acreditamos. Podemos até pagar mais caro, desde que ela dê um retorno positivo à sociedade”, pontifica o engenheiro agrônomo Lucas Iff, 30 anos. Em nome de seus princípios, Iff e a mulher, a advogada Priscila Martins, 27, mudaram do Rio de Janeiro para o interior de Minas Gerais, em busca de maior qualidade de vida.
No Brasil, a ascensão dos millennials à faixa mais larga da pirâmide demográfica desencadeia consequências de efeitos fundamentais no futuro do país. “Essa geração encarna um bônus demográfico, oportunidade única para as sociedades”, chama atenção o demógrafo José Eustáquio Alves. Isso quer dizer que a atual estrutura etária da população, com sua maior parcela em idade produtiva, favorece o desenvolvimento econômico. É verdade que, infelizmente, desperdiçamos parte da potencialidade do bônus, que começou a se desenhar a partir dos anos 1970. Mas a janela só se fecha em 2034 e os jovens adultos de hoje representam o último vento demográfico a favor, antes que o envelhecimento inexorável da população reduza sua força de trabalho.
Dar as mãos a grupos geracionais e entender como pensam tem o dom de ajudar a reerguer economias. Foi o que aconteceu nos Estados Unidos depois da II Guerra Mundial. Passado o caos inicial e deslanchada a recuperação, o clima de prosperidade favoreceu uma explosão de nascimentos de bebês, os baby boomers, que hoje têm entre 56 e 74 anos. Essa faixa etária foi impactada pela popularização da TV, pela pílula anticoncepcional, pela entrada da mulher no mercado de trabalho, pelos ideais de liberdade e igualdade e pela ambição de trabalhar, formar família e enriquecer — quanto antes, melhor. Agora, isso é passado. “Diferentemente dos meus pais, posso adiar minha entrada no mercado profissional e os planos de me casar e ter filhos”, alegra-se Vivian Doimo, de 27 anos, que mora com a família e há três anos se prepara para o concurso de juíza. Sem pressa, a seu jeito e com satisfação pessoal garantida. #YOLO.
Colaboraram Jana Sampaio, Thaís Gesteira e Caio Mattos
Publicado em VEJA de 21 de outubro de 2020, edição nº 2709