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A geração do aqui e agora: como os millennials moldam o mundo

Pela primeira vez em meio século, os destinos do planeta estão nas mãos de uma nova faixa etária, de 24 a 39 anos

Por Ernesto Neves, Sofia Cerqueira Atualizado em 4 jun 2024, 14h54 - Publicado em 16 out 2020, 06h00

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CONEXÃO É VIDA
A advogada carioca Leticia Becker, 28 anos, que atua em uma startup de mobilidade urbana em São Paulo: “Trabalho, estudo e tenho todo tipo de entretenimento pela internet”, diz ela

O mundo mudou, e não é só por causa dos perrengues universais provocados pela pandemia. Entre os habitantes do planeta, a parcela majoritária em idade produtiva, que já está ditando o modo de pensar, viver, trabalhar e consumir e continuará a fazê-lo por décadas, são os chamados millennials — e eles são muito diferentes de tudo aquilo a que estávamos acostumados. A comprovação mais cabal de que as cartas estão nas mãos de uma nova geração se deu nos Estados Unidos, uma espécie de farol do comportamento ocidental: lá, em abril, os millennials, jovens entre os 24 e 39 anos assim denominados por nascerem com a existência voltada para o que seria o novo milênio, ultrapassaram em número os baby boomers, a turma então predominante que cresceu e apareceu como fruto das mudanças e da prosperidade que se seguiram à II Guerra Mundial (veja o gráfico abaixo). Antes dos Estados Unidos, a América Latina, a China e a Índia já registravam um em cada quatro habitantes dentro dessa faixa etária, que também agrupa a maior fatia populacional — 34% — no Brasil. Discretamente, sem grande alarde, o globo vem se ajustando aos efeitos de uma sacudida demográfica de enorme significado, capaz de estremecer os pilares da política, da economia e dos valores inclusive na Europa, mais envelhecida porém, e mesmo assim afeita à influência dessa tribo que molda o mundo e é moldada por ele.

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Os millennials se encontram no topo da pirâmide econômica do planeta, somando 1,8 bilhão de pessoas — quase um terço da população. Esse universo em expansão deve representar, em 2030, 4 trilhões de dólares em poder de compra, segundo previsão do Banco Mundial. No Brasil, serão maioria da força de trabalho já no ano que vem e em uma década preencherão 70% dos postos (veja o gráfico na pág. 62). Vem daí, provavelmente, o medo constante do desemprego, citado como grande preocupação em todas as pesquisas. Mesmo estando situados em camadas sociais diversas e separados pela desigualdade social na maior parte dos países, o Brasil entre eles, esses jovens unem-se pela conexão com a internet em matéria de sonhos e aspirações. “Muitas vezes, eles só têm recursos para adquirir o básico, mas ambicionam os mesmos produtos e experiências que a parcela mais favorecida”, observa a socióloga e pesquisadora Marilene Pottes, da Antenna Consultoria.

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(Egberto Nogueira/Ímãfotogaleria/VEJA)
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RAZÃO E CONSUMO
O casal Lucas Iff, 30 anos, e Priscila Martins, 27, ela mineira e ele carioca, foi morar no interior de Minas Gerais. “Não nos importamos de pagar mais caro por marcas com engajamento ambiental”, afirma Lucas

A virada geracional tem alto potencial para influenciar votações, inclusive a disputa presidencial que se aproxima nos Estados Unidos, onde 42% dos eleitores serão millennials em 3 de novembro, contra 22% em 2014. A notícia não é boa para o republicano Donald Trump, rejeitado por 64% deles por encarnar radicalismos e preconceitos que a turma rejeita. Mas o democrata Joe Biden também não os entusiasma: embora esteja 20 pontos à frente do adversário nas intenções de voto, é visto de modo negativo por 57% dessa fatia populacional, que diz que só vai cravar seu nome na urna por falta de alternativa.

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Quem são, afinal, esses jovens adultos que têm as rédeas da humanidade nas mãos? A resposta, em princípio complicada por abarcar usos e costumes de gente espalhada por todos os continentes, hoje em dia é facilitada pelo fator web, que fez da juventude atual uma massa mais ou menos homogênea em matéria de gostos, hábitos e aspirações (veja o quadro da pág. 65). Tendo crescido junto com a disparada das redes sociais e dos smartphones, o millennial é, acima de tudo, um conectado, grudado na tela do celular dia e noite ou, como eles dizem, 24/7 (twenty-four/seven, em inglês, por favor). O tempo dedicado a mensagens cifradas, ícones, fotos e vídeos, sua forma de se relacionar com seus pares, fez dele um ser autocentrado e narcisista — e as selfies em série estão aí para uma amostra dessa face. Ao mesmo tempo, a convivência em tribos ativou neles o engajamento em causas sociais, destacando-se em primeiríssimo lugar as ações em prol do meio ambiente — aquecimento global e produção sustentável estão no topo da lista de suas preocupações.

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A atitude tem, é claro, reflexo no que consomem. Como a demanda desse contingente populacional é um potente motor da economia, as empresas estão revirando seus conceitos para se adaptar a um novo comprador, mais saudável e consciente, atento para a qualidade de vida, a sustentabilidade e os valores éticos. “Em plena idade produtiva, essa geração não está só mudando a maneira de consumir, como atuando diretamente na transformação de bancos, companhias de telefonia, redes de varejo e empresas de tecnologia e inovação”, afirma o sociólogo Dario Caldas, diretor do Obser­vatório de Sinais, consultoria de tendências em comportamento.

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(Ricardo Borges/VEJA)

DO NINHO NINGUÉM ME TIRA
A capixaba Vivian Doimo, 27 anos, foi estudar no Rio, onde mora com os tios, e sonha ser juíza. “Estou me preparando para um concurso e não tenho pressa de trabalhar nem de casar”, diz

Passar o tempo fazendo o que gosta e aproveitar cada minuto da melhor forma possível é o objetivo declarado do millennial, que em geral não cultiva ambições espetaculares (tirando a de gerar e vender um unicórnio, as startups de 1 bilhão de dólares, o que costuma ser mais sonho do que projeto). Uma observação sistemática de seus perfis mostra adesão irrestrita ao lema “só se vive uma vez” — ops, you only live once, encapsulado na sigla YOLO, de alta frequência nas redes. Individualista, adepto de exercícios e de um modo de vida mais saudável para si e, por tabela, para o planeta em que vive, o millennial desenvolveu a paradoxal capacidade de dar pouca bola para as grandes questões da civilização, o que é ruim ou bom. Vão vivendo, ponto — e são inflexíveis.

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Morar sozinho e comprar um carro, atos que baby boomers e Hollywood transformaram em ritos de passagem para a vida adulta, saíram de moda. O jovem moderno nem aprende a dirigir e não tem nenhuma pressa de se desprender do lar paterno, o que lhe dá liberdade para fazer as coisas no tempo que achar adequado. Por outro lado, sempre dentro de sua bolha, não aproveita a chance de conversar e desfrutar da experiência dos mais velhos, uma das falhas no aprendizado da tribo. Resistente a rótulos, essa juventude mantém distância de partidos, religiões e instituições, uma indiferença que, se de um lado estimula certa alienação, de outro incentivou nela uma maior aceitação da diversidade de raças e gêneros.

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(Ricardo Borges/VEJA)

TANTAS BANDEIRAS 
O defensor público Luís Henrique Zouein, 29 anos, do Rio, repisa valores como tolerância e diversidade e preza o bem-estar do corpo e da mente. “Pratico tudo isso no dia a dia”, garante

Acostumado à ausência de lideranças definidas nos movimentos empreendidos em redes sociais, o millennial simplesmente desconhece autoridade. Sendo assim, não tem por que se rebelar contra ela e aceita o establishment e o uso da máquina em vigor para alcançar as transformações que almeja — no que é o exato oposto da juventude rebelde dos baby boomers, em constante mobilização pelos direitos das mulheres, pela igualdade racial e pela paz mundial. “Além de numericamente relevantes, os millennials são formadores de opinião, influenciando outras faixas”, diz Ricardo Ismael, cientista político e professor da PUC-Rio. Artistas dessa fatia etária, como o youtuber Felipe Neto (que dá opinião até sobre o que não sabe), a cantora Iza e o ator Bruno Gagliasso, assumem posições sabendo perfeitamente que vão inspirar outras pessoas. Políticos que defendem minorias, dizem prezar a ética e fogem do padrão convencional costumam contar com seu apoio, sem grande distinção partidária. “A cada eleição, eles serão mais decisivos”, ressalta o sociólogo Paulo Baía, da UFRJ. “Busco políticos que sejam tolerantes com o diferente, que promovam diversas visões de mundo e governem para todos”, concorda o defensor público Luís Henrique Zouein, 29 anos, que, como muitos millennials, procura conciliar a carreira com as causas em que acredita.

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Na mesma toada de “minha satisfação em primeiro lugar”, o jovem adulto de hoje se envolve em vários projetos ao mesmo tempo e muda de emprego sem piscar. “Sou ambiciosa e procurei um lugar onde pudesse crescer rápido. Em quatro meses, avancei aqui muito mais do que em uma empresa tradicional”, explica a carioca Leticia Becker, de 28 anos, que trocou um escritório de advocacia pela chance de trabalhar na startup de mobilidade urbana 99 — os nichos de novidades tecnológicas, com os desafios e riscos que carregam, são o emprego dos sonhos. Com seu novo jeito de ser, eles estão forçando o mercado a atender às suas vontades e caprichos. “Não compram apenas produtos. Querem coisas que traduzam as mensagens em que acreditam”, diz Keith Niedermeier, professor de marketing da Wharton School, da Filadélfia.

Viajar (sempre atento à pegada de carbono) e viver novas experiências estão no topo das atividades preferidas de uma geração que dá mais valor a usufruir do que a ter, o que embasa o sucesso de empresas de compartilhamento como Uber, Airbnb e o coletivo de escritórios WeWork. “No papel de consumidores, são mais ativos e exigentes do que as gerações anteriores. Pedem marcas que se posicionem de forma transparente e que ousem pôr em prática novos tipos de negócios”, diz Daniela Cachich, vi­ce-presidente de marketing de alimentos da PepsiCo Brasil. A lição está sendo aprendida a duras penas por nomes consagrados como Unilever e Coca-Cola — esta, uma marca-símbolo da juventude que perdeu o ritmo ao não perceber a tempo que millennial que é millennial torce o nariz para refrigerantes, e agora corre atrás do prejuízo. “Buscamos o engajamento de uma marca em causas em que acreditamos. Podemos até pagar mais caro, desde que ela dê um retorno positivo à sociedade”, pontifica o engenheiro agrônomo Lucas Iff, 30 anos. Em nome de seus princípios, Iff e a mulher, a advogada Priscila Martins, 27, mudaram do Rio de Janeiro para o interior de Minas Gerais, em busca de maior qualidade de vida.

Vietnam Day March
PAZ E AMOR - Protesto contra a guerra do Vietnã, em 1965: os rebeldes de antigamente deram lugar a jovens com dificuldade em reconhecer autoridade – (Stan Wayman/Getty Images)
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No Brasil, a ascensão dos millennials à faixa mais larga da pirâmide demográfica desencadeia consequências de efeitos fundamentais no futuro do país. “Essa geração encarna um bônus demográfico, oportunidade única para as sociedades”, chama atenção o demógrafo José Eustáquio Alves. Isso quer dizer que a atual estrutura etária da população, com sua maior parcela em idade produtiva, favorece o desenvolvimento econômico. É verdade que, infelizmente, desperdiçamos parte da potencialidade do bônus, que começou a se desenhar a partir dos anos 1970. Mas a janela só se fecha em 2034 e os jovens adultos de hoje representam o último vento demográfico a favor, antes que o envelhecimento inexorável da população reduza sua força de trabalho.

Dar as mãos a grupos geracionais e entender como pensam tem o dom de ajudar a reerguer economias. Foi o que aconteceu nos Estados Unidos depois da II Guerra Mundial. Passado o caos inicial e deslanchada a recuperação, o clima de prosperidade favoreceu uma explosão de nascimentos de bebês, os baby boomers, que hoje têm entre 56 e 74 anos. Essa faixa etária foi impactada pela popularização da TV, pela pílula anticoncepcional, pela entrada da mulher no mercado de trabalho, pelos ideais de liberdade e igualdade e pela ambição de trabalhar, formar família e enriquecer — quanto antes, melhor. Agora, isso é passado. “Diferentemente dos meus pais, posso adiar minha entrada no mercado profissional e os planos de me casar e ter filhos”, alegra-se Vivian Doimo, de 27 anos, que mora com a família e há três anos se prepara para o concurso de juíza. Sem pressa, a seu jeito e com satisfação pessoal garantida. #YOLO.

Colaboraram Jana Sampaio, Thaís Gesteira e Caio Mattos

Publicado em VEJA de 21 de outubro de 2020, edição nº 2709

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