Cerimônia do 8 de janeiro mostra que pacificação política segue nebulosa
Além de Arthur Lira, metade dos 27 governadores faltou ao evento, incluindo os dos três maiores e mais importantes estados da federação
No final de 2023, o presidente Lula teve a ideia de promover em Brasília um megaevento para marcar um ano dos inaceitáveis ataques às sedes dos três poderes. O roteiro inicial desenhado para o ato de 8 de janeiro, batizado de Democracia Inabalada, previa que Lula subisse a rampa do Congresso e, no topo, fosse recebido pelos chefes da Câmara e do Senado. Do lado de fora, haveria manifestações populares de repúdio ao golpismo. Ao mesmo tempo, do lado de dentro, o lustroso salão do Senado seria palco de um grande aceno à pacificação ao reunir as mais poderosas figuras do país, independentemente de suas posições político-partidárias, em torno de uma causa nobre. Mas nem tudo saiu como planejado. Da mesma forma que a população não se mobilizou em torno da efeméride, uma significativa parcela das autoridades convidadas acabou por usar as férias ou agendas pessoais como desculpa para não comparecer. Metade dos 27 governadores faltou ao evento, incluindo os dos três maiores e mais importantes estados da federação: Tarcísio de Freitas (São Paulo), Cláudio Castro (Rio de Janeiro) e Romeu Zema (Minas Gerais).
A ausência do presidente da Câmara, deputado Arthur Lira, e de quatro dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal também foi notada. Se um dos objetivos do governo era mostrar que é possível unir forças, inclusive as mais antagônicas, em defesa de uma causa nobre como a democracia, é temerário considerar que a iniciativa foi bem-sucedida. E quando se sabe ainda que os comandantes militares chegaram a cogitar a hipótese de não participar da solenidade, fica evidente que o clima não é tão ameno quanto se diz. A polarização, a intolerância e a estupidez que serviram como catalisadores da invasão e depredação das sedes dos três poderes no ano passado continuam deixando o ambiente turvo. Temia-se que o presidente politizasse a cerimônia — e foi exatamente o que aconteceu. Quem apareceu, viu de perto o furor palanqueiro de Lula, que desferiu ataques a inimigos e rasgados elogios a ele mesmo, tirando o brilho daquilo que havia de mais importante na cerimônia: o repúdio institucional às cenas de selvageria protagonizadas na capital federal que jamais serão esquecidas ou ficarão impunes.
Antes mesmo de ser oficializado, o ato da última segunda-feira já era tratado entre auxiliares palacianos como um momento “imperdível” para o idealizador da cerimônia. “Você acha que o presidente ia perder essa oportunidade? Jamais”, ironizou um ministro, ao comentar o cancelamento compulsório de todas as agendas e férias para aquela data. No entorno de Lula, sempre foi reconhecido que o petista, após ser eleito na sua mais difícil campanha, conseguiu azeitar as relações com os demais poderes depois dos atos de vandalismo. Em 2023, no dia seguinte aos ataques e com o país ainda sob estado de choque, os governadores, os presidentes da Câmara e do Senado e os ministros do Supremo se reuniram em Brasília e caminharam de braços dados em meio aos escombros. Uma pesquisa do instituto Quaest divulgada na semana passada ajuda a explicar o que mudou nesse período — ou, na verdade, o que não mudou.
De acordo com o levantamento, 89% continuam condenando os atos golpistas de 8 de janeiro. Há praticamente um consenso, portanto, de que os ataques devem ser repudiados. Lula sabe disso e decidiu aproveitar a onda. A divergência começa quando se pergunta sobre a responsabilidade de Jair Bolsonaro nos atos antidemocráticos. Quarenta e sete por cento dos entrevistados acreditam que o ex-presidente teve algum tipo de influência, enquanto 43% rechaçam qualquer vinculação. O quadro era diferente — e mais desfavorável ao ex-presidente — no ano passado. Um mês depois da baderna, 51% apontaram algum tipo de influência do capitão, enquanto 38% defendiam o contrário. A diferença de percentual entre os dois grupos caiu de 13 para 4 pontos. Os governadores e políticos de oposição também sabem disso e decidiram não comparecer. O país continua dividido e, ao que parece, não há interesse algum em qualquer tipo de pacificação.
Diante de governadores, parlamentares, ministros palacianos e do Supremo, o presidente saudou aqueles que “se colocaram acima das divergências para dizer um eloquente não ao fascismo”, agradeceu a dedicação das forças de segurança e defendeu que haja uma união de esforços para aperfeiçoar a democracia. Até aí, declarações à altura de um chefe de Estado. Mas Lula aumentou a calibragem e disse que, “se a tentativa de golpe fosse bem-sucedida”, e a julgar pelo que “o ex-presidente golpista pregou em campanha”, “adversários políticos e autoridades constituídas poderiam ser fuzilados ou enforcados em praça pública”. O presidente ainda se dedicou a atacar os filhos de Jair Bolsonaro, ao questionar por que eles não renunciam ao mandato em protesto à alegada fraude das urnas eletrônicas. A fala para a seleta plateia não difere dos últimos discursos do petista, quando, acompanhado por sua claque em eventos oficiais, Lula chamou Bolsonaro de “desgraça”, “gente ruim” e “facínora”.
O clima belicoso não incluiu apenas Bolsonaro como alvo. Prenúncio de que a pacificação estava longe do horizonte, Lula decidiu, em entrevistas, atacar o governador do Distrito Federal. Em acusações gravíssimas, o presidente disse que Ibaneis Rocha (MDB) foi cúmplice e conivente com os atos golpistas, além de ter firmado um pacto com Bolsonaro, militares e policiais que resultou nos ataques em Brasília. “Não tem outra coisa a fazer a não ser prender esse governador”, afirmou. Por ordem do ministro Alexandre de Moraes, Ibaneis Rocha ficou afastado por dois meses do governo do DF logo após os atentados do ano passado. Ele é investigado pelo STF por uma suposta omissão ao não ter preparado o esquema de segurança na capital federal — para Moraes, a Polícia Militar do DF negligenciou, de maneira proposital, a proteção das sedes dos três poderes, o que permitiu o quebra-quebra generalizado. Ibaneis, por óbvio, não compareceu à cerimônia. O emedebista justificou que está de férias em Miami, na Flórida, com previsão de retornar ao país no próximo dia 15.
Outra ausência notória foi a do presidente da Câmara, Arthur Lira, que também desistiu de participar de última hora. Na noite anterior ao evento, o deputado telefonou para Lula para justificar a ausência. Disse que estava em Alagoas acompanhando um familiar doente. O problema de saúde é real, mas não o único motivo da falta. Lira se irritou com a organização do evento, coordenado pela primeira-dama Janja da Silva. No convite oficial, Janja incluiu apenas as assinaturas de Lula e Pacheco. Não foi certamente uma distração. No vídeo institucional gravado para ser exibido no ato, o presidente da Câmara também não aparecia. Em um sinal de que seria uma cerimônia governista, e não de Estado, Janja também escolheu a governadora petista Fátima Bezerra, do Rio Grande do Norte, para abrir os discursos. Lira decidiu não comparecer.
O evento ainda rendeu cenas de constrangimento aos três comandantes das Forças Armadas. Sentados na quinta fileira, atrás de ministros e convidados, eles tiveram de ouvir uma sequência de discursos sobre a tentativa de golpe — o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, afirmou que “já não há mais espaço para quarteladas” —, além do coro “sem anistia” puxado por Fátima Bezerra. Lula, que mantém uma relação de desconfiança com os militares desde o início do governo, também não colaborou. Além de não fazer nenhuma deferência ao trio — eles sequer foram mencionados na extensa nominata lida antes do início do pronunciamento —, o presidente saudou os “militares legalistas”, reacendendo os ataques à corporação, já que, indiretamente, indicou que há “golpistas” em meio às tropas. Os comandantes aplaudiram o discurso sem nenhum entusiasmo.
As ausências que foram notadas
Muitos políticos se recusaram a participar da solenidade
Arthur Lira
O presidente da Câmara se irritou com a organização do evento, coordenado por Janja da Silva, a primeira-dama
Tarcísio de Freitas
Aliado do ex-presidente Bolsonaro, o governador de São Paulo está em viagem de férias pela Europa
Ibaneis Rocha
O governador de Brasília foi acusado por Lula de ter sido cúmplice de uma tentativa de golpe
Publicado em VEJA de 12 de janeiro de 2024, edição nº 2875