Casos de violência contra crianças e adolescentes ampliam alerta por cerco às redes
Diante da crise, ganham fôlego iniciativas das autoridades em torno das plataformas digitais

Era tarde de terça-feira, 1º de abril, quando uma turma de estudantes do sétimo ano do ensino fundamental de uma escola municipal em Caxias do Sul (RS) assistiu, em pânico, a três colegas, com idades entre 13 e 15 anos, puxarem facas das mochilas durante a aula de inglês e atacarem a professora — que sobreviveu. Os alunos foram levados à polícia, que descobriu que o plano, movido pela vingança por repreensões disciplinares, fora combinado em conversas pelo Instagram. Em outro caso chocante, ocorrido no início de maio, em Uberaba (MG), uma menina de 14 anos de um colégio particular recebeu bilhete em sala de aula com a “sentença de morte” e, segundos depois, foi assassinada a tesouradas por um colega da mesma idade. A justificativa do autor dos golpes, segundo relato da polícia: “ela simbolizava a alegria que eu não tinha”. Longe de serem episódios isolados, essas ocorrências fazem parte de um quadro mais amplo, terrivelmente brutal e cada vez mais presente no cotidiano das escolas brasileiras.
O caldeirão dessa realidade inclui variadas formas de violência, como agressão física, bullying e assédio. Em grande parte, esse cenário é alimentado pela crescente vulnerabilidade de crianças e adolescentes na internet, ambiente onde são expostos a uma cultura de ódio e se tornam presas fáceis para aliciadores, predadores e extremistas. Desde 2020, o Ministério dos Direitos Humanos recebeu quase 180 000 denúncias de violência presencial nas escolas envolvendo crianças e adolescentes, sendo que 85% delas foram registradas somente nos últimos três anos. Também houve outras 50 000 violações contra menores de idade especificamente no ambiente digital — tortura psicológica, exposição e erotização estão entre os crimes mais comuns, e os alvos mais frequentes são meninas de 12 a 14 anos. “O anonimato na web facilita o ódio às mulheres, que já existe na sociedade machista, e a mesma ideologia é usada para cooptar meninos, que vivem inseguranças naturais na adolescência, para reproduzir esses ataques”, diz Pilar Lacerda, secretária nacional dos Direitos de Crianças e Adolescentes. Também crescem de forma alarmante os atentados extremos contra escolas, envolvendo armas de fogo, explosivos, facas e machadinhas: dos 42 registrados entre 2001 e 2024, dois terços ocorreram nos últimos dois anos, segundo pesquisa da Unicamp para a ONG D3E.
O diagnóstico do problema passa, invariavelmente, pelo uso excessivo das redes sociais por menores de idade sem a devida supervisão dos pais e educadores. Em canais sigilosos, crianças e adolescentes conversam livremente com estranhos e são bombardeados com conteúdos nocivos à saúde mental, incluindo exaltação a autores de atentados, vídeos explícitos de tortura e abuso sexual e glorificação do nazismo. A polícia do Espírito Santo investiga, por exemplo, um grupo de WhatsApp, denunciado em abril, no qual adolescentes discutiam formas brutais de matar uma colega de turma e atribuir o assassinato ao ditador alemão Adolf Hitler. Coordenadora do NetLab, projeto da UFRJ que monitora crimes na internet, a pesquisadora Débora Salles explica que o discurso apelativo e chocante é intrínseco às redes, cujo modelo de negócios é prender a atenção do usuário a qualquer custo. “Os algoritmos têm o efeito comprovado de dessensibilização à violência, o que é extremamente perigoso para adolescentes que vivem pressões sociais e buscam acolhimento em espaços virtuais”, diz.

No âmbito da Polícia Federal, multiplicam-se operações contra grupos suspeitos de aliciar menores na web para violência e exploração sexual. Em ações lideradas pelo Ciberlab da PF, policiais infiltrados monitoram fóruns na deep web e canais fechados em redes como Discord e Telegram. O delegado Alessandro Barreto, que coordena o Ciberlab, relata casos de extrema barbaridade que circulam nessas comunidades, incluindo pornografia infantil, crueldade com animais e aliciamento de garotas para sexualização e automutilação — um episódio, conta, envolvia um adolescente de 13 anos que “escravizava” ao menos dez meninas para cortar as próprias partes íntimas em lives. “O que vemos é uma insanidade nas redes, um cenário de incitação de crimes bárbaros para ganhar curtidas e popularidade nesses grupos”, afirma. O panorama é perturbador: apenas em 2024, quase 50 000 páginas de venda e compartilhamento de abuso infantil foram denunciadas à SaferNet, que representa o Brasil em uma rede global de combate à pedofilia. “Esse tipo de conteúdo, antes restrito a canais obscuros, tem se tornado mais acessível a usuários comuns na web superficial”, afirma Juliana Cunha, diretora da ONG.

Outra ameaça que acende um alerta são as “brincadeiras” perigosas de resistência física, popularmente chamadas de desafios, que circulam em redes como TikTok, Instagram e Kwai. “Jogos” do tipo levaram ao menos 56 menores de idade à morte no Brasil desde 2014, segundo o Instituto DimiCuida. O infame “desafio do desodorante”, que consiste em inalação de aerossol, causou duas mortes em 2025 — as meninas tinham 8 e 11 anos, menos que a idade mínima de 13 anos para ter contas na maioria das plataformas. O Ministério da Justiça estuda mecanismos mais eficientes para verificação etária dos usuários, como biometria facial ou aplicativos de autenticação, e a adoção de classificação indicativa para canais específicos na internet. “Não existe esse controle por parte das plataformas, e é preciso garantir que crianças e adolescentes acessem espaços condizentes com suas capacidades psicossociais”, diz Lílian Cintra de Melo, secretária de Direitos Digitais da pasta.
Diante da crise, ganham fôlego iniciativas das autoridades para fechar o cerco em torno das plataformas digitais. No Planalto, um novo projeto de lei para regulação das redes, elaborado por nove ministérios, aguarda o aval do presidente Lula para ser enviado ao Congresso. Enquanto o texto não sai, o advogado-geral da União, Jorge Messias, tenta pressionar o Supremo por medidas urgentes de responsabilização das big techs por conteúdos violentos, ilegais e falsos. Ele entrou com dois pedidos para a Corte antecipar mudanças no Marco Civil da Internet — que são discutidas em julgamento que soma três votos favoráveis — e endurecer o rigor com as plataformas. O caso estava parado desde o fim de 2024, após pedido de vista do ministro André Mendonça, mas será retomado na próxima quarta-feira, 4. Na Câmara, cresce a pilha de propostas para combater a violência em escolas e redes contra menores de idade, incluindo um pedido de CPI com apoio pluripartidário (da esquerda aos evangélicos) para investigar as plataformas. “A monetização da violência e da sexualização precoce prejudica diretamente a formação dos jovens e contesta valores fundamentais da escola e da família”, diz Maria do Rosário (PT-RS), autora do requerimento. Já a Secretaria de Comunicação da Presidência lançou em março um abrangente guia para uso de telas por crianças e adolescentes. “O governo incentiva pais e professores a acompanhar os hábitos dos jovens na internet, mas a ação não será suficiente sem um ambiente regulatório adequado que amplie as responsabilidades das redes”, avalia João Brant, secretário de Políticas Digitais.

Do lado das plataformas, há uma retórica coordenada de que já existem os mecanismos de moderação e uma maior regulação seria prejudicial aos próprios usuários. Procuradas por VEJA, as empresas Discord, TikTok e Meta (dona do Instagram, Facebook e WhatsApp) enviaram comunicados detalhados sobre suas políticas de controle de conteúdo e parcerias com o governo e ONGs. Fato é que as ações das big techs não bastam para conter o problema, vide a crise de violações envolvendo crianças e adolescentes, que não dá sinais de retroceder sob as leis atuais. O quadro colocado é grave e exige articulação, responsabilidade e pulso firme — das empresas, da classe política, das famílias e da sociedade.
Publicado em VEJA de 30 de maio de 2025, edição nº 2946