Carta ao Leitor: Um passo atrás
Com o governo atual, avanços da reforma trabalhista promulgada na gestão de Michel Temer correm o risco de reversão

O estádio do Club de Regatas Vasco da Gama, na Zona Norte do Rio de Janeiro, estava lotado no sábado à tarde, 1º de maio de 1943. A principal atração do dia não era um jogo de futebol, mas uma comemoração patrocinada pelo presidente Getúlio Vargas: o anúncio da Consolidação das Leis do Trabalho. Como o nome indica, a CLT unificava uma série de legislações referentes a direitos como os de limitação da jornada de trabalho, férias remuneradas e formação de sindicatos. O Brasil vivia sob um regime autocrático e parte da inspiração para o novo código teve origem no modelo de outra ditadura, a de Benito Mussolini, na Itália, com sua Carta del Lavoro. Embora questionável em muitos aspectos, a CLT é reconhecida por ter organizado as relações trabalhistas num país que estava no rumo da industrialização e da urbanização.
Durante décadas, aliás, ela serviu como um guia obrigatório nas relações entre patrões e empregados. Com o tempo, no entanto, suas regras deixaram de dar conta das transformações no mundo do trabalho. A economia, com novas tecnologias, avançou principalmente na oferta de serviços — hoje, mesmo um país emergente como o Brasil gera mais de 60% do seu produto interno bruto nesse campo. Os serviços também se tornaram as atividades que mais empregam os brasileiros. Por isso, foi bem-vinda a aprovação, há seis anos, de uma reforma trabalhista que atendeu a necessidades contemporâneas como a do trabalho temporário e a da terceirização. Um dos principais marcos na história política recente, promulgada durante o governo de Michel Temer (entrevistado desta semana nas Páginas Amarelas), a reforma também serviu para reduzir o número de conflitos que vão parar na Justiça: no Tribunal Superior do Trabalho, a quantidade de processos caiu de 2,6 milhões em 2017 para 1,1 milhão no ano passado.
Com o governo atual, contudo, avanços correm o risco de reversão. Nesta edição, uma reportagem de VEJA aborda tentativas de retrocesso, entre as quais a que propõe a recriação da cobrança obrigatória de contribuições dos empregados para a sustentação de sindicatos — o imposto sindical. Esse tipo de proposição contrasta com a ausência de um projeto para o fim da unicidade, a regra que impede a formação de sindicatos concorrentes, mesmo que trabalhadores assim o queiram. Também não há consenso entre os supostos beneficiados quanto à criação de vínculos para entregadores de encomenda, os motoboys, e motoristas de carros ligados a aplicativos, como o Uber e o 99. Na visão de muitos desses autônomos, a liberdade para atender a diversas empresas (e controlar seu próprio horário) é mais valiosa do que uma carteira assinada. Tais ideias revisionistas, infelizmente, têm um enorme apego ao passado, enxergando sempre uma polarização de interesses entre patrões e empregados. É um ponto de partida similar ao que gerou projetos de taxação de riqueza (outra reportagem de VEJA desta edição), como se isso pudesse solucionar a carência dos mais pobres. Há muito a ser feito para a desejada evolução do Brasil — e não será com passos para trás que vamos conseguir isso.
Publicado em VEJA de 1º de setembro de 2023, edição nº 2857