Carta ao Leitor: Licença para destruir
Corre o risco de virar cinzas a pretensão do Brasil de se tornar um líder mundial em preservação, conforme tenta vender no exterior o presidente Lula
A cena se repete no país a cada novo desastre ambiental relacionado à destruição de nossos biomas mais preciosos: em meio à calamidade, autoridades tentam mostrar serviço, visitando localidades atingidas e prometendo novas medidas de prevenção e ações duras contra os infratores pegos em flagrante. Infelizmente, há muita fumaça e poucos resultados práticos nesse tipo de mobilização. O histórico lamentável não impede que as promessas de atitudes mais efetivas sejam renovadas diante da comoção provocada pelas perdas quase irrecuperáveis, conforme faz agora o atual governo federal. As medidas anunciadas nos últimos dias sugerem que será tudo diferente em relação ao recorde de queimadas deste ano no país. Será?
Até o momento, mais de 200 000 focos de incêndio foram registrados em 2024. Os casos considerados criminosos geraram aproximadamente 1,4 bilhão de reais em multas aplicadas pelo Ibama. A tragédia brasileira ocorre quando a cobrança dessas infrações entra nas engrenagens da burocracia estatal e da Justiça. Ao final, somente uma parte ínfima das punições aos responsáveis permanece de pé. Segundo o TCU, casos que deveriam ser julgados em um ano se arrastam por seis. Em boa parte das vezes, os processos simplesmente caducam sem que o mérito deles tenha sido discutido nos tribunais, graças a manobras e recursos utilizados com a finalidade de obter a prescrição da pena.
O resultado: das 56 900 multas aplicadas nos últimos cinco anos para crimes ambientais, menos de 10% foram efetivamente pagas. Desse total, mais de 9 000 infrações, somando 2,4 bilhões de reais, correm o risco de prescrever até 2026. Com isso, vigora por aqui uma espécie de licença para destruir, que não poupa nem a maior riqueza natural do país, a Amazônia. Em 31 de julho de 2020, a reportagem de capa de VEJA listou os dez maiores desmatadores da floresta, com multas que variavam de 9 milhões a 50 milhões de reais. Nove deles ainda não pagaram seus débitos e continuam recorrendo das autuações.
Diante desses números, corre o risco de virar cinzas a pretensão do Brasil de se tornar um líder mundial em preservação, conforme tenta vender em suas andanças pelo exterior o presidente Lula, sendo que a Assembleia Geral da ONU foi o palco mais recente desse tipo de discurso. Na reportagem da semana, uma equipe comandada pelo editor José Benedito da Silva analisa os desafios para enquadrar na Justiça os criminosos e mostra possíveis soluções para punir de forma rápida e exemplar quem destrói o meio ambiente. Acabar com a fogueira da impunidade precisa ser uma das prioridades do país.
Publicado em VEJA de 27 de setembro de 2024, edição nº 2912